Era fim de Outono, e uma forte tempestade caia
incessantemente, castigando as folhas das poucas árvores que cresciam em uma
extensa pradaria que se estendia pelo horizonte, com seu gramado esverdeado.
Cortando essa pradaria, uma sutil estrada de terra crescia em linha reta, onde
um homem andava pacientemente.
Do céu cinzento e coberto de nuvens, as grossas gotas de
chuva caíam e escorriam pelo manto que lhe cobria dos pés à cabeça, onde um
capuz cobria e escondia a cor que deveria ter em seu rosto com uma escuridão
incólume. O manto, por sua vez, era negro como a noite, como o mar antes do
alvorecer, sem resquícios de manchas ou sujeira que o deixe menos parecido com
uma simples sombra a caminhar.
O homem atravessava a pradaria como se tivesse todo o tempo
do mundo ao seu dispor, sem parecer preocupado com o tempo ruim acima de sua
cabeça ou com os raios que cruzavam os céus como serpentes pálidas em meio às
nuvens. O homem não tinha medo dos raios, dos trovões, do vento forte que
soprava do sul e por que haveria de ter? O medo de tormentas é comum em pessoas
ignorantes. É o medo das coisas que não se pode controlar, coisa que o homem
que ali caminhava em passos lentos, não sentia de forma alguma, pois conhecia
as tempestades, conhecia do que elas eram feitas e como eram formadas e, até
certo ponto, que estragos poderiam fazer. O ser humano teme o desconhecido, não
as coisas que lhe são claras; e aquele homem conhecia muitas coisas, coisas
naturais ou não, velhas ou novas, simples ou complexas. Conhecia tudo como se
tudo fizesse parte dele mesmo.
É verdade, era um alvo fácil para qualquer raio que
decidisse cair ali, sobre a pradaria, e isso não podia negar. Mas era um homem
acostumado a ser perseguido pela morte, era um homem que vivia sentindo o frio
hálito dela em sua nuca, pois ela o seguia, quase como sua própria sombra,
desse modo, que medo haveria de ter dela? Viveria para sempre com medo, se
assim fosse. Estaria trancado, em um porão, trancado com dezenas de cadeados,
como qualquer homem sensato faria se estivesse em seu lugar. Mas ele o amava,
amava o perigo que cobria cada esquina que pudesse virar, amava a sensação de
poder morrer a qualquer instante e, sobre isso, pouco se pode dizer, a não ser
que é assim que foi obrigado a se acostumar a viver, até parar de pensar na
morte. Na própria morte, pelo menos, como é comum se pensar. Na verdade, algum
dia, ele achava que poderia chegar ao ponto de deseja-la.
Após muito tempo caminhando, como um fantasma errante na estrada,
avistou em meio aos relâmpagos e a noite que rapidamente cobria o céu, as luzes
do que poderia ser a cidade que estava procurando. Continuou vagarosamente, até
chegar próximo às redondezas do local. Sim, era a cidade, ou pelo menos ao
próximo de uma cidade. Assemelhava-se mais a uma pequena vila, com não mais do
que um punhado de pessoas, mas isso não o preocupou. Não se importava com isso,
contanto que pagassem o combinado.
A vila era minúscula e, com um rápido passar de olhos, era
fácil contar o número de casas e estabelecimentos, ambos erguidos com madeira
tosca e de aparência nada confiável para uma estrutura, além de o homem ter
certeza de que estavam infestadas de cupins. Não havia muralha em torno do
local, tampouco guardas, por isso, o homem de negro entrou na cidade sem
quaisquer problemas. Caminhou entre as primeiras casas da rua principal, que
era apenas uma continuação da estrada, observando o lugar. Estava vazio, ou
pelo menos parecia, até ver uma movimentação em uma janela. Um homem o observava
lá de dentro, com um olhar desconfiado. Isso era de se suspeitar, claro, um
homem vestido totalmente de negro andando em meio à chuva é algo que não passa
despercebido, ainda mais em uma cidadezinha como aquela, onde forasteiros são
incomuns. Se for pensar realmente, faz todo o sentido do mundo o homem estar
desconfiado, geralmente as cidades pequenas tendem a abrigar pessoas muito
supersticiosas, pessoas que nunca leriam um livro; se não fosse A Sinfonia, e o
homem realmente lembrava uma criatura não humana. E dessa forma, pela primeira
vez em anos, o homem sentiu que um ignorante, seguindo o seu instinto, poderia
encontrar a verdade onde um sábio não se daria ao menos o trabalho de procurar.
Então, finalmente deu-se conta de um homem protegendo-se da
chuva, sentado em um caixote sob a varanda de madeira do que parecia ser o
maior edifício da cidade. Ele era um sujeito forte, de braços grossos,
musculosos e bronzeados. Seu rosto era coberto por uma barba curta e castanha,
assim como seus cabelos, que rareavam no topo da cabeça. Vale a pena dizer que
seus olhos eram ferozes, como os de um animal selvagem encurralado, mas mesmo
assim, ao contemplar o homem de negro à sua frente, pareciam cobertos por um
pequeno temor, em seu íntimo. Talvez tão íntimo, que estivesse escondido até
mesmo dele próprio.
- Olá. – disse ele, em um tom de voz grave, que combinava
com o seu porte físico, levantando-se, tentando demonstrar que sua musculatura
deveria assustar o homem que encarava. – está perdido?
O homem de negro suspirou. Era claro que não o
reconheceriam, o haviam chamado a mais de um mês, provavelmente já nem se
lembravam do visitante que esperavam.
- Não, eu não estou perdido, pelo menos se aqui for mesmo
Meadoway. – a voz do homem era calma como o seu caminhar, digna do homem
paciente que ele era. Parecia um sussurro em meio à tempestade que caia, mas
mesmo assim, o sujeito pareceu ouvi-la. Mas antes que ele pudesse responder, o
homem continuou. – Sou Cain e vocês mandaram uma carta para a Chama Cinzenta,
pedindo pelos serviços de um de nós, então me mandaram, se isso te esclarece os
fatos.
Ao citar a Chama Cinzenta, a máscara do homem ruiu, como se
tivesse visto um fantasma ou então percebido que, o homem pudesse realmente ser
algum tipo de fantasma ou coisa parecida. O fato é que seus músculos nada
adiantariam ali, por isso, ele pareceu entorpecido. Cain continuou quieto, em
meio à chuva, sem responder.
- Ah, claro... sim, a Chama Cinzenta. Prazer, eu sou
Jonathan, Jonathan Lough. – disse o sujeito, enquanto seus músculos faciais
pareciam contorcer-se, escondendo seu temor. – O Doyle disse que você chegaria
em breve.
- E aqui estou eu. – respondeu, sem floreios. Estava
irritado até os ossos por vários motivos, entre eles, a cansativa viagem que
teve para chegar até esse, como pensava em sua cabeça, fim de mundo. – Me leve
até esse Doyle.
- C-claro, venha, saia da chuva. – disse, enquanto se
afastava um passo para trás, dando espaço para que Cain adentrasse na parte
coberta. Lá, tirou o capuz.
Jonathan pareceu desconcertado ao ver que, sob aquele capuz,
escondido em meio a sombras, havia apenas o rosto de um garoto. Seu rosto era
fino e bem torneado, seus olhos escuros, como os cabelos compridos que lhe
desciam pelos ombros e o rosto, branco e limpo. Essa seria a descrição que um
cidadão comum de um pequeno vilarejo faria, pois ele não teria a perspicácia de
ver através do que havia para ser visto ali. O fato é que, um sujeito mais
curioso, mais inteligente e, em alguns casos, mais atento, perceberia que
aquele não era um rosto comum. Perceberia que a palidez em seu rosto era
diferente, quase doentia, sem sinais de sangue por dentro da carne, como o de
um homem morto que passou muito tempo debaixo d’água. Já seus olhos, eram escuros e frios, não
refletiam brilho algum, nem a luz dos raios que cintilavam no céu. Olhos
cansado, repletos de sutilezas em seus movimentos, como se tivessem visto tudo
o que existe para ser visto e nada mais lhe fosse novidade. Tudo isso sem levar
em consideração o fato de ele estar completamente seco.
- O que foi? – perguntou Cain, ao perceber que o homem o
encarava. – Não sou exatamente o que você esperava?
- Nada, desculpe-me se o incomodei. – respondeu Jonathan,
suspirando baixinho. Pareceu aliviado por Cain não se tratar de nada anormal a
primeira vista.
Cain continuou quieto, então se virou de costas para o homem
e olhou para o céu, encarando as nuvens gigantescas lá em cima.
- Não quer esperar a chuva passar? –perguntou Jonathan
enquanto o vento aumentava de intensidade lentamente. – sabe, é do outro lado
da cidade.
- Tudo bem. – respondeu Cain, enquanto erguia o braço e
afastava a manga do manto, deixando sua mão livre.
A mão estava coberta com algum tipo de placa de metal
escuro, que se dobrava em seus dedos, encaixando-se perfeitamente nas falanges,
como se fosse parte de uma armadura. Na parte de cima, porém, cintilavam cinco
pedras pequenas, incrustadas no metal. Uma delas era prateada, como o brilho da
lua. Outra, azulada como o céu do meio dia. A outra, vermelho-escuro, como uma
gota de sangue. A quarta era esverdeada
como a folha viva de uma árvore majestosa. E a quinta, era dourada como ouro
puro. Seus dedos, cobertos pelo metal, saíram da área protegida da chuva, assim,
as gotas caíram sobre eles e escorreram.
Jonathan sentou-se novamente no caixote, a julgar pelo
barulho da madeira rangendo. Ficou algum
tempo quieto, refletindo, então comentou.
- Achei que vocês fossem mais velhos, sabe?
- A maioria de nós realmente é, mas deve levar em conta que
eu sou o mais novo do qual já ouvi falar. – respondeu Cain, ainda observando a
chuva. – Conhecimento não vem com idade e sim com o tempo que você dedica a
aprender.
Jonathan riu baixinho, não de forma zombeteira, mas como se
achasse aquilo divertido.
- Você fala como um velho.
Cain virou-se para o homem e encarou-o com seus olhos frios.
- Todos dizem isso. – retrucou, enquanto levantava o braço
esquerdo, afastando a manga comprida, revelando uma mão comum, e coçava o olho
de forma desatenta.
Logo percebeu que estava sendo muito duro com o homem. A
viagem foi longa e difícil, mas ele não era o culpado, por isso Cain, apesar de
toda a sua irritação, deu a si próprio um pouco de descanso e sentou-se no
chão, com as pernas cruzadas. Vendo que Jonathan estava pouco à vontade,
sentiu-se na obrigação de ser um pouco mais gentil. Tratava-se de gente
simples, é verdade, ignorantes e quase selvagens, mas ainda assim, achou que
seria melhor tentar conversar sobre algo simples.
- Chove assim sempre por aqui? – perguntou, com a primeira
coisa que lhe veio à cabeça.
- Não sempre, mas quando chove, é chuva desse tipo pra pior.
– respondeu Jonathan. – Mas estamos todos acostumados por aqui. Todos menos os
Hughes, que são donos das fazendas nas redondezas. Ficam irados com essas chuvas, perdem tudo o que
plantaram recentemente. Nesse momento devem estar amaldiçoando deus e o mundo.
– terminou, deixando escapar um riso seco entre os dentes.
Cain passou a mão de metal sobre a parte da terra que ainda
estava seca e desenhou um rosto simples.
- Imagino... –
comentou para não deixar o vazio silencioso preencher o espaço entre os dois,
em seguida, rabiscou o que poderia ser um cabelo naquele rosto marrom no chão.
Na verdade, não imaginava. Não imaginava como alguém poderia querer uma vida
como aquela, de dono de fazenda, e nem como um desgosto como a chuva estragar a
plantação poderia ser pior do que continuar vivendo daquela forma. – E você, o
que faz? – perguntou, apesar de já saber a resposta.
O homem estufou o peito, respirando fundo.
- Eu sou o ferreiro da cidade. Faço de tudo um pouco, quando
se trata de trabalhar com metais. – respondeu ele, enquanto passava a mão na
barba. Então pareceu que algo lhe veio à cabeça de repente. - A propósito, o
que aquilo na sua mão? Parece trabalho de primeira linha!
- Ah, não é nada importante, só uma luva de aço-negro. Na
Chama Cinzenta, chamam de Punho De Ferro, apesar de eu achar o nome um tanto
quanto inapropriado. – Respondeu Cain, enquanto esticava a manga do manto e
erguia a mão de aço-negro no alto, mostrando-a. O ferreiro inclinou-se para
frente, interessando.
- É forjado com magia? – perguntou. Seus olhos cintilaram.
Cain deixou o braço cair e a manga escondeu a mão,
deslizando por cima do aço. Depois, olhou para trás e viu que as gotas haviam
diminuído sua frequência e caiam em número muito menor.
- Acho que está parando de chover. Vamos? – disse,
interrompendo o assunto bruscamente, enquanto se levantava lentamente. Seu
manto continuou completamente limpo, sem qualquer mancha de terra, do chão
sobre o qual havia se sentado.
Jonathan achou melhor não insistir no assunto da mão, por
isso resolveu que seria melhor ir. Apesar de tudo, não queria perder tempo além
do necessário, estava fascinado com a possibilidade de ver um aluno da Escola
em ação.
- Vamos, é por aqui. – respondeu, enquanto se levantava do
caixote e andava em direção à parte onde a varanda não mais o protegia das
gotas que ainda caiam.
Cain colocou o capuz e o seguiu.
Eles caminharam pela cidade vazia, atravessaram as ruas de
terra e as casas mal construídas, sem dizer palavra alguma. Cain percebeu
algumas pessoas nas janelas, escondidas atrás das cortinas, observando-o, como
se fosse algum animal raro do qual tivessem medo.
Quando a lua surgiu no céu e os últimos raios de sol
desapareceram no horizonte, Jonathan parou de frente a um sobrado, o que não
quer dizer que fosse uma casa grande.
O homem bateu na porta com força e olhou para trás,
repousando os olhos sobre Cain.
- Acho melhor você tirar o capuz, pode assusta-lo. Ele é
meio velho, se é que me entende.
Cain jogou o capuz para trás e passou a mãos nos cabelos
compridos, ainda completamente secos, afastando-os dos olhos. Então, um pequeno
pedaço de madeira moveu-se na porta, abrindo um pequeno vão, onde dois grandes
olhos encararam os dois homens do lado de fora. Em seguida, a porta foi aberta,
com um rangido, mostrando um homem parado junto à soleira. Era um homem de idade
muito avançada, mas era bastante alto, com olhos pequenos desenhados em um
rosto coberto de rugas. O pouco cabelo branco que tinha sobre a cabeça estava
despenteado, com algumas partes amassadas e outras arrepiadas, como se tivesse
acabado de acordar.
- Jonathan, que surpresa agradável... – disse o velho, com
uma voz mansa, como se falasse com uma criança. Em seguida, pousou os olhos
sobre Cain e voltou-os para Jonathan quase que em seguida.
- Olá, Doyle, é um prazer ver que está bem. Espero não ter
chegado em uma hora ruim. – disse o ferreiro, ao ver que o homem estava
vestindo roupas de dormir e tinha os olhos cansados de sono.
Doyle pigarreou e sorriu com os poucos dentes que ainda
restavam em sua boca.
- Claro que não, toda hora é hora de encontrar os amigos. –
respondeu, mostrando uma gentileza sutil que não era tão comum em pessoas na
idade dele. – E quem é esse seu amigo ai atrás?
Jonathan virou-se e estendeu a mão em direção a Cain, como
se mostrasse um objeto que pretendia vender.
- Esse é o Cain, ele é enviado da Chama Cinzenta. – disse
Jonathan, tentando demonstrar mostrar-se mais alegre do que parecia estar,
abrindo um sorriso amarelo.
Doyle passou os olhos dos pés à cabeça de Cain.
- Ah sim... – começou ele, enquanto piscava os olhos e
encarava o garoto, olhando-o com curiosidade. – Achei que vocês fossem mais
velhos. Mas agora, entrem, por favor. Acabou de anoitecer e não se sabe o que
espreita por ai. – completou, antes que Cain pudesse responder.
Cain olhou para Jonathan, que deu de ombros, e então ambos entraram enquanto Doyle se
afastava e abria a porta.
A sala era pequena e mal iluminada, simples como uma casa do
interior tem o direito de ser. Os móveis eram poucos; uma mesa de madeira
preenchia metade do espaço entre uma parede e outra, rodeada de pequenas
cadeiras e banquinhos. Em um pequeno móvel em um dos cantos, três velas
queimavam em um candelabro de cobre, trazendo uma tímida e amarelada luz para o
local. No outro canto, um pequeno armário mostrava as louças da casa: meia
dúzia de pratos e copos.
Doyle circulou a mesa e foi até o armário, onde abriu uma
pequena porta na parte de baixo e tirou uma garrafa de vidro, então passou a
mão sobre ela e a assoprou, tentando tirar o pó.
- Por favor, sentem-se. – disse, enquanto colocava a garrafa
sobre a mesa e pegava três copos.
Cain olhou para o lado e viu que Jonathan já estava sentado,
com o pé apoiado em outro banquinho. O garoto ficou aliviado por saber que
Jonathan estava à vontade. Não que aquele homem pudesse fazer qualquer mal a
ele. Longe disso. Mas por algum motivo, sentia-se um pouco inquieto quando se
tratava de idosos. Então, puxou um banquinho e também se sentou.
Doyle encheu os três copos com o que parecia ser vinho e
empurrou um para Jonathan e um para Cain.
- Então garoto, como foi de viagem? – perguntou, depois de
bebericar o vinho.
Cain relaxou e se aconchegou no banquinho, depois levou a
taça à boca e deu um grande gole. Fazia tempo que não bebia algo tão bom. A
viagem tinha sido horrível; suas provisões haviam acabado no meio da viagem,
pois, segundo as informações que tinha, encontraria a cidade em poucos dias.
Graças a esse pequeno imprevisto, passou a viver de lebres mal cozidas,
lagartos assados e outros animais que encontrou pelo caminho. Isso, fora as
tempestades, que chegavam de repente, como golpes de chicote.
- Foi ótima. – respondeu prontamente, não querendo
demonstrar que teve alguns problemas.
Jonathan olhou para Cain, de forma desconfiada.
- Tem certeza? Geralmente, os forasteiros tem dificuldade
pra chegar aqui por causa da localização. Dizem que é uma cidadezinha afastada
do mundo. – disse, soltando um riso abafado.
- Isso é verdade, é uma cidade um pouco distante das outras.
Doyle riu junto com o amigo. Em seguida deu um grande gole
em seu copo e encarou Cain com seus olhos caídos, de forma interessada.
- Distantes das outras? É assim que preferidos, sabe? Sem
muito contato com o mundo exterior. Os homens das grandes cidades tendem a
complicar muito as coisas, dar nomes estranhos às coisas, usar engrenagens e
correntes para tudo. – disse, com sua voz calma. Depois de uma pequena pausa,
continuou. – vivendo aqui, pagamos muito menos impostos, temos espaço para
fazermos o que quisermos e as nossas crianças não precisam ter medo de brincar
fora de casa.
Cain sabia a verdade. Sabia que o homem estava mentindo. Na
Chama Cinzenta, havia recebido a informação de que ali, naquela pequena cidadezinha,
funcionava uma pequena rede que ajudava no comércio de escravos para Ikhar’e.
Era quase um posto de descanso para os traficantes de escravos, pois a estrada
que ali passava, dava direto em Greedbay. Os homens ali, se aproveitavam disso
e davam comida e estadia para os traficantes e suas caravanas. Aquilo irritava
Cain profundamente, mas não era aquilo que havia ido tratar, então não havia
motivos para criar problemas.
- Ah, entendo. – disse, enquanto dava o último gole em seu
copo e o colocava sobre a mesa, vazio.
Doyle o encheu novamente, depois voltou os olhos para o
garoto.
- Você pode ficar aqui em casa, se quiser. Até terminar o
trabalho. – disse, depois apontou para as escadas no fundo do aposento. – Só eu
e a minha filha moramos aqui, então temos um quarto vago para hóspedes.
Cain sabia que tipo de hóspedes Doyle alojava, mas recusar a
oferta seria demasiado grosseiro, por isso, sorriu abertamente.
- Claro. Seria um prazer.
Um silêncio irrompeu no local durante os segundos seguintes.
Cain tinha certeza que os dois homens queriam abordar o trabalho que ele faria,
de uma maneira que não parecesse tola, por isso, deviam estar pensando muito em
como começar a falar sobre isso. Então, achou melhor ele próprio começar.
- Vocês tem alguma informação sobre a criatura? – achou
melhor ser direto.
Doyle e Jonathan ficaram parados, sem fazer movimento algum.
Parecia que, falar sobre aquele assunto, não os agradava, pois em seguida, seus
olhos correram pelo aposento rapidamente.
- Fale disso baixo, menino! – irrompeu Doyle, sussurrando de
forma ríspida, inclinando-se sobre a mesa. – Não sabe como essas coisas são?
Cain passou a mão em seus cabelos, afastando-os do rosto.
Estava claro que aqueles sujeitos supersticiosos teriam medo da própria sombra
em uma noite sem lua.
- Não se preocupem, já protegi a casa contra malefícios. –
disse, de forma branda. Claro que era mentira, mas não havia forma de explicar
para os dois sujeitos ignorantes do interior, que não havia problemas em falar
em sua casa, seu local sagrado, do que para eles, podia ser qualquer coisa
parecida com um demônio.
Doyle encarou Cain, com os olhos semicerrados.
- Tem certeza? Eu não vi nada disso e muito menos lhe dei
permissão pra fazer essas coisas na minha casa.
Cain bufou. Estava ficando cansado daquele joguinho.
Provavelmente, os dois sujeitos temiam qualquer tipo de menção a magia ou
qualquer coisa que desconhecessem a essência. Apesar disso, deviam achar que
ele é como os magos de meia tigela que deviam ter passado pela cidade e ajudado
a consertar objetos quebrados ou vendido anéis com falsas propriedades, por
isso, resolveu fazer uma demonstração.
- A magia trabalha de formas sutis. Vocês não podem vê-la,
ouvi-la, mas isso não quer dizer que ela não está aqui.
Doyle parecia ainda não acreditar e, apesar de estar certo,
Cain não queria deixar transparecer que queria falar livremente sobre criaturas
da noite dentro da casa do homem sem ter jogado qualquer feitiço de proteção.
Precisava dar um jeito de engana-los, faze-los acreditar que podiam falar sobre
o que quisessem ali dentro, mesmo que já fosse noite, pois havia alguém ali que
eles não haviam notado. Alguém que os protegeria de qualquer coisa ruim que
pudesse acontecer e, pensando melhor, talvez esse alguém tivesse realmente
lançado qualquer proteção. Mas na dúvida, Cain resolveu que seria melhor
aplicar algo ali.
- Vejam bem. – disse Cain, enquanto enfiava a mão no bolso
dentro de seu manto. – Tenho a sua permissão?
Doyle assentiu com a cabeça, curioso.
Cain tirou de dentro do manto, um pequeno pedaço de giz
branco e ali, sobre a mesa, desenhou um pequeno círculo. Dentro dele, um
pequeno retângulo, com setas saindo das quatro extremidades, apontando para os
quatro cantos da sala. Em volta do círculo, desenhou as letras A S D S E T, de
forma muito simétrica. Novamente dentro do círculo, desenhou algumas inscrições
que se assemelhavam com uma meia lua, duas lâminas de foices e uma calda com a
ponta de seta.
Jonathan afastou um pouco o corpo, inclinando-o para trás,
com os olhos bem abertos pousados sobre o círculo.
- O que é isso? – perguntou.
- Isso, Jonathan, é o segredo do sucesso de um mago. –
respondeu Cain, enquanto pegava o próprio copo e o virava, deixando cair duas
gotas de vinho exatamente no centro do retângulo. Em seguida, colocou os dedos
indicadores nas duas extremidades do círculo e fechou os olhos. Então,
murmurou.
- Circa effusus vinum, flamma crescant. Jurat in occulta
atque fulgentem luna, pro anguis Reptantesque. Flamma crescant.Flamma crescant.
Em poucos segundos, da minúscula poça cor de sangue ali
feita pelas gotas da bebida, uma pequena luz acendeu. Logo, a pequena luz
cresceu, sob a forma de uma pequena chama avermelhada, que dançou perante os
olhos dos dois indivíduos. Em seguida, apagou-se por completo e Cain abriu os
olhos.
Doyle e Jonathan observavam o garoto, de boa aberta, como se
ele fosse magia em carne e osso.
Ainda incrédulo com o que acabou de presenciar, Doyle passou
a mãos nos olhos, esfregando-os vigorosamente.
- Isso... isso foi magia de verdade? – perguntou estupefato,
como se lhe faltassem palavras.
Cain riu baixinho, tampando a boca com as costas da mão.
Adorava ver como as pessoas comuns reagiam ao presenciar tal experiência. Era
como contar mil vezes a mesma piada e continuar a achar graça.
- Na Escola, não chamamos de magia. Temos vários nomes e
termos técnicos, por exemplo, aqui, eu apliquei a Siglística em uma série de
runas simples, depois usei a Nomenclatura para igualar o nível térmico do
vinho... – começou Cain, mas parou no meio da frase, ao perceber que os
sujeitos o olhavam como se ele falasse outra língua, por isso, resolveu
exemplificar. – Apesar de tudo isso, pra vocês, isso foi magia e isso que
importa.
Jonathan pareceu mais interessado do que assustado. Parecia
à beira de um milhão de perguntas, mas as engoliu. Em vez de fazê-las, percebeu
que seria melhor ir direto ao assunto, pois ali estava provado que o garoto a
sua frente não era pura e simplesmente um garoto comum que veio da cidade.
Havia percebido isso ao encontra-lo no meio da chuva e agora, essa demonstração
havia reforçado seu pensamento.
- Acho que isso resolve a questão, não Doyle?
O velho assentiu, agora encarando o garoto com outros olhos.
Seu olhar, antes cansado e pouco desperto, parecia envolto de curiosidade e
possivelmente, um pequeno temor.
- Bom, já que estamos resolvidos, me falem sobre essa
criatura. – disse Cain, enquanto empurrava o copo da direção de Doyle, para que
ele o enchesse.
- Bom, não sabemos muito dela, pra falar a verdade. Eu mesmo
não a vi. – começou, enquanto derramava o líquido dentro do copo lentamente.
Parecia estar falando mais baixo do que o normal, apesar de tudo, como se
temesse que, seja lá o que fosse a coisa da qual queriam se livrar, estivesse
lá fora, tentando ouvir a conversa. – Os cidadãos dizem que se parece com uma
mulher alta, de pele branca e cabelos escuros, que anda nua pelas ruas da
cidade quando a noite cai. Ela invade as casas sem arrombar as portas, sem
quebrar as janelas, como se o fizesse com magia, e estrangula as garotas mais
novas. Tudo sem qualquer barulho, como se nem os seus passos nos pisos de
madeira emitissem qualquer som... – continuou, enquanto colocava a garrafa,
agora vazia, sobre a mesa e empurrava o copo de volta.
Cain ficou quieto durante algum tempo, refletindo. Levou a
mão à testa, o cotovelo à mesa e ficou apoiado, de olhos fechados.
- Conte-me mais. Quantas garotas ela já levou? Quais as
idades delas? Eram virgens?
- Levou quatro das nossas garotas, eram jovens moças, com
não mais do que dezesseis anos cada uma. Imagino eu que algumas delas fossem
virgens sim, por quê?
Cain voltou a calar-se. Permaneceu assim por vários minutos,
em seus panoramas mentais, refletindo.
- Acho que é uma Quasyt. – disse Cain, ainda de olhos
fechados. Não estava realmente certo disso, as informações eram muito poucas
para se chegar a uma conclusão final. As criaturas da noite eram de centenas de
tipos e muitas agiam de formas parecidas.
- E o que isso? – perguntou Jonathan, falando a frente de
Doyle.
- É uma criatura da noite, como vocês já devem suspeitar. –
começou Cain, afastando os cabelos do rosto e jogando-os para trás. – Ela
aparece exatamente nessa forma, faz exatamente essas coisas. Costumamos
apelida-la de Ladra de Fôlego na Chama Cinzenta, pelo modo como ela age. Asfixiando,
sabe? – ambos assentiram com a cabeça. – o problema é que ela geralmente tende
a ser um espírito ligado à vingança e eu não sei o que ela pode estar querendo
vingar. Acho que vou ter que mata-la sem saber.
Doyle finalmente pareceu animado com a conversa. Abriu um
pequeno sorriso e seus olhos se estreitaram, empurrado pelas bochechas
flácidas.
- Você pode mata-la? Jura? – perguntou ansioso.
- Claro, se pode andar, pode morrer. – respondeu Cain, de
forma ríspida.
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O quarto estava escuro e as únicas fontes de luz, eram a lua
cheia, que cintilava prateada na grande janela de vidro e uma pequena vela, com
não mais do que alguns poucos centímetros de altura, repousada em um prato de
porcelana sobre a cômoda. O aposento não era nada grande, mas parecia cheio por
conta dos móveis. Uma cadeira de madeira, a já citada cômoda ao lado da cama, a
própria cama e um pequeno armário próximo da porta.
Cain estava apenas com sua calça, sentado sobre a pequena
cama com colchão de palha, virado de costas para a janela. A lua iluminava
várias cicatrizes prateadas que cruzavam a sua pele em vários formatos
diferentes. Além das cicatrizes, lá havia algumas marcas diferentes, escuras,
com os mais diversos símbolos desenhados, como que em tinta preta.
Mas não, não havia apenas isso naquele quarto. Lá, estava
repousando algo que poucos perceberiam a presença. Algo maravilhoso e belo, que
não pertencia, de forma alguma ao lugar em que se encontrava. Algo que estava
além da compreensão dos dois grosseirões que Cain acabou de conhecer.
- Aquela conversa demorou demais, meu querido. – disse uma
voz baixa e feminina, vindo da escuridão onde, tanto a luz da lua quanto a luz
da vela não conseguiam, ou temiam, iluminar. Era uma voz sedutora, leve como
uma folha carregada pelo vento.
Cain sorriu ao perceber quem estava ali com ele.
- Nem percebi que já tinha voltado. – disse, enquanto
encolhia os pés para cima da cama e massageava a sua sola. – meus pés estão
doendo horrores, acho que vou ter que amputa-los. – brincou.
- Eu os amputo, se me fizer massagem nas costas e um chá
quente de ervas. – respondeu a voz, em tom ainda mais brincalhão. Em seguida,
deu uma risadinha doce e singela, como de uma criança. – Eu devia te
estrangular. Fazer com que eu fique naquela forma por tanto tempo, te
protegendo da chuva, é cansativo demais!
Logo, a dona da voz adentrou na parte iluminada. Tratava-se
de uma mulher, uma bela mulher, mais bela do que poderia ser descrita com
palavras de qualquer língua mortal. Sua pele era muito alva, iluminada pela luz
prateada do luar. Alvos também eram seus cabelos, brancos e pálidos, porém
lisos e compridos, descendo-lhe na altura de seus seios muito fartos. Seu corpo
era escultural, digno de ser pintado em quadros, como os deuses esquecidos de
antigamente, pois era magro e bem torneado, perfeitamente simétrico e
imaculado, coberto parcialmente por um curto vestido, branco como seus cabelos,
que lhe desciam na altura das coxas. Já seu rosto, era perfeitamente anguloso,
fino e liso, límpido e sem marcas, adornado por uma pequena máscara que cobria
seu nariz até a sobrancelha. Uma máscara preta e sem adornos, com as
extremidades levemente repuxadas. Não era uma mulher comum, sua beleza não era
como a beleza de um mortal, era muito mais profunda, muito mais pura, como a
própria beleza haveria de ser se tivesse uma forma física.
- Desculpe! – riu-se Cain, enquanto esticava a perna na
direção da mulher. – primeiro você. – disse, com um sorriso no rosto. Pela
primeira vez, desde que chegou à cidade, sorriu de forma sincera. Feliz.
A mulher abaixou-se, encarando o garoto com um olhar que
misturava frustração e diversão ao mesmo tempo. Então segurou o pé esticado à
sua frente, pelo calcanhar e começou a fazer cócegas. Cain começou a rir,
primeiro baixinho, depois cada vez mais alto, enquanto seu corpo parecia à
beira de espasmos. Ele tentava, durante isso, puxar o pé e livrar-se das mãos
da mulher, mas seus esforços eram fracassados.
- Eu, Lilith, Dama Da Noite e Serpente-Rainha, estou banindo
em nome dos... – Cain tentou puxar com
mais força e riu ainda mais alto. – Dá pra parar de gritar? Estou tentando
banir esse encosto folgado que te segue!
O garoto, desesperado, atirou-se na direção da mulher,
saltando de cima da cama. Ambos rolaram pelo quarto, embolados um ao outro, aos
risos. Afinal, conseguiu livrar o calcanhar dos dedos de Lilith, claro, ela
havia deixado. É impossível que ele tivesse força para se soltar se ela não
quisesse fazê-lo.
- Sua bruxa malvada! – disse Cain em tom brincalhão,
enquanto tentava recuperar o fôlego e se afastava da mulher, ficando ajoelhado
sobre o chão de madeira. – Sabe que eu odeio cócegas.
- E eu odeio passar o dia todo na forma de um casaco,
querido. – respondeu ela, prontamente, imitando a posição do garoto de forma
irônica e apontando o dedo indicador para o garoto. – Nunca mais vou vesti-lo,
não importa se estiver chovendo ácido ou fogo!
Cain inclinou-se para frente e encarou Lilith nos olhos, com
uma expressão maliciosa no olhar. Os doces olhos esverdeados dela cintilaram na
escuridão.
- Quer dizer que não gosta de ficar com o seu corpo colado
ao meu por tanto tempo? – perguntou, tentando afastar a vontade de rir que
subia pela sua garganta.
Antes que Lilith pudesse responder qualquer coisa, ouviu-se
o som de alguém batendo na porta do quarto. Uma batida leve e delicada, então
Cain logo suspeitou que não se tratava de Doyle.
- Você selou o quarto contra sons? – perguntou Cain, aos
sussurros, assustado.
- É claro que selei, meu querido. – respondeu Lilith,
tocando o rosto do garoto com a ponta dos dedos. Então sua voz saiu um pouco
mais sedutora do que de costume. – Acha que eu quero mesmo que aquele velho
rabugento escute os seus gemidos no meio da noite?
Cain virou o rosto.
- Se esconde, faz alguma coisa. E, por Eltharys, nada
incomum! – disse, enquanto se levantava vagarosamente do chão e ia em direção à
porta. Confiando em Lilith, nem se virou para olha-la antes de abrir a porta.
Cain se assustou ao perceber que, do lado de fora do quarto,
uma garota estava parada. Era um pouco mais nova que Cain, a julgar pela sua
aparência, não passando dos catorze anos. Era baixa e bonita, seus cabelos eram
louros e lisos, dourados como trigo, enrolados em algumas trancinhas,
contornando seu rosto branco, com algumas sardas de sol. Ela vestia uma roupa
comum de dormir, com uma calça e uma blusa leves e confortáveis, de lã barata.
- Você é o Cain? – perguntou ela em voz baixa, com uma doce
voz que só uma garota de cidadezinha podia possuir.
- Sou sim. Você é a filha do Doyle, não? – respondeu Cain,
imitando a voz baixa dela.
Ela assentiu com a cabeça. Apesar de todas as marcas e
desenhos à tinta pelo corpo do garoto, seus olhos repousaram na mão direita
dele, onde o Punho De Ferro fechava-se em torno de sua pele.
- Ah, isso aqui? – perguntou Cain, esticando o braço em
direção a ela. – Ele em vários significados e várias utilidades para nós. Pena
que depois que a colocam, não dá mais para tirar. - Ao perceber que a garota
pareceu meio um pouco chocada, completou fazendo uma careta. – Dói horrores
colocar isso aqui.
A garota sorriu timidamente e voltou os olhos aos do garoto
à sua frente. Pausou alguns segundos, provavelmente pensando nas palavras que
iria usar, mas então fez a pergunta que tanto queria.
- Você é mesmo um mago? Um bruxo?
Cain não queria assustar a garota, por isso, resolveu
contornar a situação. Geralmente, faria alguma coisa queimar ou estalar, algum
clarão de luz, e isso resolveria a questão. Mas ali não, não queria
afugenta-la.
- Não sou bem um mago, não como os que você está costumada
ouvir nas histórias. Nós só falamos que somos para assustar as pessoas
sensatas. E, bem, você não deve ser muito sensata, vindo ao quarto de um homem,
a essa hora da noite, com a probabilidade dele ser um mago ou bruxo.
Ela riu baixinho, levando a mão à boca, para abafar. Em
seguida, olhou ao redor, preocupada com o som que acabou de fazer.
- Então, o que você é se faz magia e não é um mago?
Cain olhou para ela, procurando uma resposta à altura da
pergunta. Nunca tinha pensado realmente em como responder esse tipo de
pergunta.
- Veja bem... Como é mesmo o seu nome? – perguntou.
- Sofia.
- Veja bem, Sofia. Magia é o nome que as pessoas dão aos fenômenos
que desconhece... por exemplo. – fez uma pausa e levou a mão à boca, pensativo.
– por exemplo... pegue uma pessoa que nunca teve contato com o álcool. Depois,
pegue um copo e encha de álcool e jogue um fósforo aceso. O que ele vai pensar
ter visto é alguém colocando fogo no que ele imagina ser água, logo vai ligar
isso à magia, entende o raciocínio?
- Sim. Acho que sim.
- Pois bem, é isso. Magia é o nome que as pessoas dão ao
desconhecido.
Sofia olhava Cain fixamente, como se ele fosse um animal exótico.
Claro que ela não devia estar acostumada àquele tipo de gente em sua casa, ou
talvez àquele tipo de conversa, por isso era totalmente compreensível.
- O que foi? Tem certeza que entendeu?
- Não, não é isso. – respondeu a garota enquanto sorria de
canto de boca. Ambos ficaram se olhando durante algum tempo.
Cain parou então para pensar. O que teria dado na cabeça
daquela garota de ir ao encontro de um mago no meio da noite? Isso não era
insensatez, era burrice! Com isso na cabeça, decidiu ler a garota.
Concentrou-se durante alguns segundos, fazendo força para
não fechar os olhos. Conectou-se lentamente com o íntimo de Sofia, ligando as
ramificações de suas emoções às dele próprio e então finalmente percebeu. Havia
uma grande angústia nela.
- Tem algo que incomodando? – perguntou, fingindo ainda ter
dúvidas sobre isso, enquanto abaixava e a olhava nos olhos. – Pode me contar,
não tenha medo. Não vou lhe fazer mal algum.
Ela hesitou. Olhou para baixo e encarou os dedos dos pés
descalços sobre o assoalho. Cain sabia que ela precisava de tempo para
responder, então não insistiu.
- Se não quiser falar, tudo bem, Sofia.
Ela demorou, ficou calada durante algum tempo, mas
finalmente falou.
- Tenho medo de que ela venha atrás de mim. Sinto pavor de
dormir, todas as noites, acho que ela está entrando na minha casa, subindo as
escadas...
Cain esticou o braço e tocou o rosto dela com a mão
esquerda, roçando a ponta dos dedos em sua bochecha, assim como Lilith fazia
com ele.
- Não se preocupe. Pelo menos essa noite, você pode dormir
sossegada. Eu estou aqui e selei essa casa com magia poderosa. Mesmo assim, se
ela conseguir entrar aqui, apesar de todas as proteções que coloquei, eu
ficarei sabendo rapidinho e, juro pelo brilho dos meus olhos, que não deixarei
que toque em você. - Então, com o dedo indicador, tocou o queixo de Sofia e
puxou-o para cima, levantando o seu rosto delicadamente. – entendido?
Ela o fitou e Cain sentiu que uma pequena fagulha iluminou o
interior dela. Não era muito, mas era alguma coisa.
- Mas os seus olhos não brilham... – disse ela, fitando-o.
Cain fez uma cara desconcertada. Não imaginou que ela
repararia nisso tão rapidamente.
- Então eu juro pela cor do meu sangue. – disse ele. Mal
sabia ela que também não podia jurar pelo sangue. – agora, vá dormir, antes que o seu pai
acorde e ache que estamos fazendo algo errado. – completou, enquanto
movimentava a mão como se espantasse um cachorro.
- Tudo bem. Obrigado. – sorriu ela, enquanto virava o rosto
e andava lentamente pelo corredor escuro lá fora, tentando não fazer barulho
quando pisava no chão de madeira.
Cain fechou a porta e apoiou a mão nela, em seguida,
respirou fundo e bufou.
- Achei que ia beija-la. – disse Lilith às suas costas,
fingindo uma voz brava.
Cain virou-se para ela, seus olhos escuros estavam agora
avermelhados, em sua parte branca e brilhavam. Não o brilho comum dos olhos.
Brilhavam cheios de lágrimas.
Lilith caminhou em sua direção e colocou seus braços em
volta dos ombros do garoto, confortando-o com o calor de seu toque sutil e
repleto de magia. Logo, Cain soluçava pesadamente, com as mãos à frente do
rosto.
- Está tudo bem, meu querido. Pode chorar, faz bem e limpa a
alma. – sussurrava ela em seu ouvido, enquanto passava a mão em seus cabelos. –
Eu te amo, está tudo bem. Está tudo bem. Calma.
Cain chorou como não chorava a tempos. Ali, acolhido nos
braços da criatura mais linda a pisar sobre a terra, deixou as lágrimas rolarem
pelo seu rosto pálido como a morte. Rolarem de seus olhos escuros e cansados,
repletos da mais profunda melancolia.
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Quando clareou, Cain estava deitado na cama, com a cabeça
sobre as pernas de Lilith e os olhos fechados. Estava mais calmo, apesar de ter
chorado por horas e horas sem parar.
A luz do sol irrompeu no horizonte e iluminou o quarto
completamente quando Cain resolveu finalmente se levantar dali. Abriu os olhos
e encarou Lilith, que lhe observava com um olhar calmo e simpático e passava a
mão em seu cabelo. Ela sabia que ele não havia dormido, ele nunca dormia
durante a noite, por isso achou que qualquer pergunta do tipo seria inútil, por
isso, permaneceu quieta.
- Já sabe como vamos derrotar essa Quasyt? – perguntou,
tentando encontrar algum assunto que não fosse sua choradeira da noite passada.
Lilith sorriu e seus olhos verdes como esmeraldas piscaram
por trás da máscara.
- Do mesmo jeito de sempre, meu querido. – respondeu ela,
pacientemente. – Eu faço tudo sozinha e você ficará deitado em algum lugar me
gritando palavras de apoio, folgado como é.
Cain sorriu e Lilith se inclinou para baixo e o beijou,
tocando-o com seus lábios quentes e avermelhados. Eles ficaram quietos durante
algum tempo, apreciando a companhia um do outro, mas logo se ouviu uma batida
na porta. Uma batida pesada que, claramente, não pertencia a Sofia.
- Cain? Sou eu, o Doyle. – ouviu-se a voz cansada do velho
lá fora.
Cain levantou-se, preguiçoso, enquanto seus ossos estalavam
em mil sons diferentes e foi em direção à porta. Lilith não se moveu.
O garoto abriu uma fresta da porta e viu o homem ali,
parado, olhando-o com um pequeno sorriso estampado no rosto.
- Tem pão e leite na mesa. Pode pegar uma fatia de queijo e
alguma fruta se quiser, eu vou trabalhar e estou levando a Sofia comigo, tudo
bem?
Cain balançou a cabeça, concordando, então bocejou
pesadamente, sem fazer questão de levar a mão à boca.
- Diga-me, vai resolver aquela questão ainda hoje? –
perguntou Doyle, com um olhar suspeito.