segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

A morte. - Cain


Um denso nevoeiro disforme pairava no ar, dando aquela fatídica noite trépida, um estranho clima enfadonho e melancólico. Claro que eu não tinha tempo para reparar neste tipo de pormenor, pois estava tomado por uma estranha languidez, ao contemplar aquela belíssima garota sentada no banco do parque.
A garoa fraca caia incessantemente, em suas minúsculas gotículas, que rasgavam o horizonte esbranquiçado. A pouca luz do ambiente –visto que era uma noite sem lua- provinha de um pequeno poste de luz de aspecto antigo, com uma caixa de aço negro fechando-se em torno da trêmula luz pálida, sob a qual, a garota banhava-se com sua claridade anêmica.
Covarde era aquela luz! Covarde e frouxa, por se recusar a iluminar o meu ser. Por recusar-se a se moldar à minha fútil forma e refletir a minha beleza sobre aquele gramado banhado pela noite.
Os espelhos atemporais em meus sonhos lúcidos construíam milhares de essências para o crime, para o pecado máximo, que formigava em minha língua, incapaz de aguardar mais tempo pela seiva humana.
- Cain, pelos céus, o que diabos você foi fazer noutro dia?
A garota não era capaz de colocar os seus olhos sobre mim, eu estava envolvido pelo meu manto sombrio, pela escuridão da noite e pelo pálido cintilar da névoa. Ela não podia sentir a minha degradante presença ou farejar no ar o pútrido odor da minha carne inumana. Mas mesmo assim, ela estava ali, encarando-me com desdém.
Estaria eu enamorado pela ímpar sensação que ela havia me causado de forma tão repentina? Aquela era uma canção antiga, uma sinfonia de barítonos que tocavam suas melodias pela eternidade. O sutil flerte de um homem com uma mulher. Mas a arrogância de tal ser humano, como ela era, não tardou a revelar-se, pois mesmo perante a morte, sentindo a respiração dela em sua nuca, ela recusou-se a ir embora.
Eu era como escuridão, pelo menos naquela noite. Nem Deus ou seus anjos seriam capazes de fazer com que eu fugisse se não fosse a Estrela Da Manhã trazendo a aurora. Mas a minha escuridão não era apenas a falta de luz, o negro escurecimento trazido pela ausência das coisas que ali faltavam. Não! Longe dessa blasfêmia perante tão grande diferença. Eu era sólido, uma sombra sólida que se arrasta pelo vento noturno. Por isso, decidi me aproximar.
Esta claro que a minha existência é degradante e meus olhos cegos não são capazes de ver todas as cores em um arco-íris, mas mesmo assim, desprovido de todos os desejos carnais que só uma raça tão individualista como a humana poderia ter, eu estava ali, caminhando em sua direção e, a garota, nem se deu ao trabalho de respirar fundo.
Ela estava dançando com a morte e sabia disso. Mas não temia o frio ou a fome, a peste e a praga que a assolariam eternamente na noite seguir e na próxima e na próxima...
As gotas da garota lamentavam as histórias que ela não viveria ou seria isso apenas mais uma insinuação infundada minha? Ela iria morrer. Isso era certo. A noite era aquela. Mas será que teria eu, tanta astúcia de deixar-me levar pelos desejos tão comuns, que apenas a mente do ser humano é capaz de desejar? Seria eu capaz de soprar todas aquelas belas cores para terras tão áridas e distantes?
Eu decidi ama-la eternamente, para o seu mais profundo desgosto. Iria mostrar-lhe a vida como realmente é, eterna e cansativa, com suas estórias repetitivas e sorrateiras, pesadas e infundadas.
Solidão, amada solidão, porque é tão terrível em continuar de mãos dadas comigo? Meu hálito pútrido, de sangue envelhecido, de carne apodrecida, balbuciava palavras de tristeza tão profundas, que nenhum mortal poderia ouvir sem achar-se desprovido de vontades sobre sua existência. Clamou Cain, erguendo o punho aos céus que lhe abandonaram, rogando suas pragas terríveis, enquanto as palavras tardavam a sumirem naquele deserto intocado pelo tempo. A vida eterna. A vida eterna derradeira e enlouquecida. Feroz e infinita. Esgotada e perdida.
Decidi-me rogar-lhe então a doença final, uma doença de morte e vida, de opostos que se completam. Tudo se completava naquela derradeira noite. O frio era a ausência de calor. A sombra era a ausência de luz.
Aproximei-me, como um sutil cavalheiro solitário. Pude ler em seus lábios os poucos desejos que lhe restavam, e então dançamos ao compasso da música noturna. Ela se afoga em carícias e amores e eu me afogo no deleite de sua amável presença. Um beijo, um pedido e você é minha, eternamente minha, indubitavelmente minha. Eu cresci como um monstro que não cairia facilmente. E ela, aprenderia da forma mais temível, como é degradante viver com a morte crescendo em seu coração.
Ela se arrependeria do ensaio que chamaria de vida, do teatro que chamaria de interação. Ela me odiaria até o fim dos tempos, pois assim caminharia sobre a terra. Sempre procurando um final para a sua viagem, indo de encontro com a vida e drenando-a para se sentir mais vívida.
Mas logo, seu olhar se despedaçaria, como cacos de vidro sobre o chão e não os apanharia, pois estes seriam afiados demais. Seus pensamentos melancólicos, bárbaros e suicidas, não tardariam a definhar; e então, morreria por si só, pela segunda vez, em um mar de desgostos.
Sua existência se tornaria a mais completa palidez, o mais completo reflexo de uma não-vida. Ela me odiaria tanto quanto se odiaria,

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