quinta-feira, 22 de novembro de 2012

aogeigheaog


Era fim de Outono, e uma forte tempestade caia incessantemente, castigando as folhas das poucas árvores que cresciam em uma extensa pradaria que se estendia pelo horizonte, com seu gramado esverdeado. Cortando essa pradaria, uma sutil estrada de terra crescia em linha reta, onde um homem andava pacientemente.
Do céu cinzento e coberto de nuvens, as grossas gotas de chuva caíam e escorriam pelo manto que lhe cobria dos pés à cabeça, onde um capuz cobria e escondia a cor que deveria ter em seu rosto com uma escuridão incólume. O manto, por sua vez, era negro como a noite, como o mar antes do alvorecer, sem resquícios de manchas ou sujeira que o deixe menos parecido com uma simples sombra a caminhar.
O homem atravessava a pradaria como se tivesse todo o tempo do mundo ao seu dispor, sem parecer preocupado com o tempo ruim acima de sua cabeça ou com os raios que cruzavam os céus como serpentes pálidas em meio às nuvens. O homem não tinha medo dos raios, dos trovões, do vento forte que soprava do sul e por que haveria de ter? O medo de tormentas é comum em pessoas ignorantes. É o medo das coisas que não se pode controlar, coisa que o homem que ali caminhava em passos lentos, não sentia de forma alguma, pois conhecia as tempestades, conhecia do que elas eram feitas e como eram formadas e, até certo ponto, que estragos poderiam fazer. O ser humano teme o desconhecido, não as coisas que lhe são claras; e aquele homem conhecia muitas coisas, coisas naturais ou não, velhas ou novas, simples ou complexas. Conhecia tudo como se tudo fizesse parte dele mesmo.
É verdade, era um alvo fácil para qualquer raio que decidisse cair ali, sobre a pradaria, e isso não podia negar. Mas era um homem acostumado a ser perseguido pela morte, era um homem que vivia sentindo o frio hálito dela em sua nuca, pois ela o seguia, quase como sua própria sombra, desse modo, que medo haveria de ter dela? Viveria para sempre com medo, se assim fosse. Estaria trancado, em um porão, trancado com dezenas de cadeados, como qualquer homem sensato faria se estivesse em seu lugar. Mas ele o amava, amava o perigo que cobria cada esquina que pudesse virar, amava a sensação de poder morrer a qualquer instante e, sobre isso, pouco se pode dizer, a não ser que é assim que foi obrigado a se acostumar a viver, até parar de pensar na morte. Na própria morte, pelo menos, como é comum se pensar. Na verdade, algum dia, ele achava que poderia chegar ao ponto de deseja-la.
Após muito tempo caminhando, como um fantasma errante na estrada, avistou em meio aos relâmpagos e a noite que rapidamente cobria o céu, as luzes do que poderia ser a cidade que estava procurando. Continuou vagarosamente, até chegar próximo às redondezas do local. Sim, era a cidade, ou pelo menos ao próximo de uma cidade. Assemelhava-se mais a uma pequena vila, com não mais do que um punhado de pessoas, mas isso não o preocupou. Não se importava com isso, contanto que pagassem o combinado.
A vila era minúscula e, com um rápido passar de olhos, era fácil contar o número de casas e estabelecimentos, ambos erguidos com madeira tosca e de aparência nada confiável para uma estrutura, além de o homem ter certeza de que estavam infestadas de cupins. Não havia muralha em torno do local, tampouco guardas, por isso, o homem de negro entrou na cidade sem quaisquer problemas. Caminhou entre as primeiras casas da rua principal, que era apenas uma continuação da estrada, observando o lugar. Estava vazio, ou pelo menos parecia, até ver uma movimentação em uma janela. Um homem o observava lá de dentro, com um olhar desconfiado. Isso era de se suspeitar, claro, um homem vestido totalmente de negro andando em meio à chuva é algo que não passa despercebido, ainda mais em uma cidadezinha como aquela, onde forasteiros são incomuns. Se for pensar realmente, faz todo o sentido do mundo o homem estar desconfiado, geralmente as cidades pequenas tendem a abrigar pessoas muito supersticiosas, pessoas que nunca leriam um livro; se não fosse A Sinfonia, e o homem realmente lembrava uma criatura não humana. E dessa forma, pela primeira vez em anos, o homem sentiu que um ignorante, seguindo o seu instinto, poderia encontrar a verdade onde um sábio não se daria ao menos o trabalho de procurar.
Então, finalmente deu-se conta de um homem protegendo-se da chuva, sentado em um caixote sob a varanda de madeira do que parecia ser o maior edifício da cidade. Ele era um sujeito forte, de braços grossos, musculosos e bronzeados. Seu rosto era coberto por uma barba curta e castanha, assim como seus cabelos, que rareavam no topo da cabeça. Vale a pena dizer que seus olhos eram ferozes, como os de um animal selvagem encurralado, mas mesmo assim, ao contemplar o homem de negro à sua frente, pareciam cobertos por um pequeno temor, em seu íntimo. Talvez tão íntimo, que estivesse escondido até mesmo dele próprio.
- Olá. – disse ele, em um tom de voz grave, que combinava com o seu porte físico, levantando-se, tentando demonstrar que sua musculatura deveria assustar o homem que encarava. – está perdido?
O homem de negro suspirou. Era claro que não o reconheceriam, o haviam chamado a mais de um mês, provavelmente já nem se lembravam do visitante que esperavam.
- Não, eu não estou perdido, pelo menos se aqui for mesmo Meadoway. – a voz do homem era calma como o seu caminhar, digna do homem paciente que ele era. Parecia um sussurro em meio à tempestade que caia, mas mesmo assim, o sujeito pareceu ouvi-la. Mas antes que ele pudesse responder, o homem continuou. – Sou Cain e vocês mandaram uma carta para a Chama Cinzenta, pedindo pelos serviços de um de nós, então me mandaram, se isso te esclarece os fatos.
Ao citar a Chama Cinzenta, a máscara do homem ruiu, como se tivesse visto um fantasma ou então percebido que, o homem pudesse realmente ser algum tipo de fantasma ou coisa parecida. O fato é que seus músculos nada adiantariam ali, por isso, ele pareceu entorpecido. Cain continuou quieto, em meio à chuva, sem responder.
- Ah, claro... sim, a Chama Cinzenta. Prazer, eu sou Jonathan, Jonathan Lough. – disse o sujeito, enquanto seus músculos faciais pareciam contorcer-se, escondendo seu temor. – O Doyle disse que você chegaria em breve.
- E aqui estou eu. – respondeu, sem floreios. Estava irritado até os ossos por vários motivos, entre eles, a cansativa viagem que teve para chegar até esse, como pensava em sua cabeça, fim de mundo. – Me leve até esse Doyle.
- C-claro, venha, saia da chuva. – disse, enquanto se afastava um passo para trás, dando espaço para que Cain adentrasse na parte coberta. Lá, tirou o capuz.
Jonathan pareceu desconcertado ao ver que, sob aquele capuz, escondido em meio a sombras, havia apenas o rosto de um garoto. Seu rosto era fino e bem torneado, seus olhos escuros, como os cabelos compridos que lhe desciam pelos ombros e o rosto, branco e limpo. Essa seria a descrição que um cidadão comum de um pequeno vilarejo faria, pois ele não teria a perspicácia de ver através do que havia para ser visto ali. O fato é que, um sujeito mais curioso, mais inteligente e, em alguns casos, mais atento, perceberia que aquele não era um rosto comum. Perceberia que a palidez em seu rosto era diferente, quase doentia, sem sinais de sangue por dentro da carne, como o de um homem morto que passou muito tempo debaixo d’água.  Já seus olhos, eram escuros e frios, não refletiam brilho algum, nem a luz dos raios que cintilavam no céu. Olhos cansado, repletos de sutilezas em seus movimentos, como se tivessem visto tudo o que existe para ser visto e nada mais lhe fosse novidade. Tudo isso sem levar em consideração o fato de ele estar completamente seco.
- O que foi? – perguntou Cain, ao perceber que o homem o encarava. – Não sou exatamente o que você esperava?
- Nada, desculpe-me se o incomodei. – respondeu Jonathan, suspirando baixinho. Pareceu aliviado por Cain não se tratar de nada anormal a primeira vista.
Cain continuou quieto, então se virou de costas para o homem e olhou para o céu, encarando as nuvens gigantescas lá em cima.
- Não quer esperar a chuva passar? –perguntou Jonathan enquanto o vento aumentava de intensidade lentamente. – sabe, é do outro lado da cidade.
- Tudo bem. – respondeu Cain, enquanto erguia o braço e afastava a manga do manto, deixando sua mão livre.
A mão estava coberta com algum tipo de placa de metal escuro, que se dobrava em seus dedos, encaixando-se perfeitamente nas falanges, como se fosse parte de uma armadura. Na parte de cima, porém, cintilavam cinco pedras pequenas, incrustadas no metal. Uma delas era prateada, como o brilho da lua. Outra, azulada como o céu do meio dia. A outra, vermelho-escuro, como uma gota de sangue.  A quarta era esverdeada como a folha viva de uma árvore majestosa. E a quinta, era dourada como ouro puro. Seus dedos, cobertos pelo metal, saíram da área protegida da chuva, assim, as gotas caíram sobre eles e escorreram.
Jonathan sentou-se novamente no caixote, a julgar pelo barulho da madeira rangendo.  Ficou algum tempo quieto, refletindo, então comentou.
- Achei que vocês fossem mais velhos, sabe?
- A maioria de nós realmente é, mas deve levar em conta que eu sou o mais novo do qual já ouvi falar. – respondeu Cain, ainda observando a chuva. – Conhecimento não vem com idade e sim com o tempo que você dedica a aprender.
Jonathan riu baixinho, não de forma zombeteira, mas como se achasse aquilo divertido.
- Você fala como um velho.
Cain virou-se para o homem e encarou-o com seus olhos frios.
- Todos dizem isso. – retrucou, enquanto levantava o braço esquerdo, afastando a manga comprida, revelando uma mão comum, e coçava o olho de forma desatenta.
Logo percebeu que estava sendo muito duro com o homem. A viagem foi longa e difícil, mas ele não era o culpado, por isso Cain, apesar de toda a sua irritação, deu a si próprio um pouco de descanso e sentou-se no chão, com as pernas cruzadas. Vendo que Jonathan estava pouco à vontade, sentiu-se na obrigação de ser um pouco mais gentil. Tratava-se de gente simples, é verdade, ignorantes e quase selvagens, mas ainda assim, achou que seria melhor tentar conversar sobre algo simples.
- Chove assim sempre por aqui? – perguntou, com a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
- Não sempre, mas quando chove, é chuva desse tipo pra pior. – respondeu Jonathan. – Mas estamos todos acostumados por aqui. Todos menos os Hughes, que são donos das fazendas nas redondezas.  Ficam irados com essas chuvas, perdem tudo o que plantaram recentemente. Nesse momento devem estar amaldiçoando deus e o mundo. – terminou, deixando escapar um riso seco entre os dentes.
Cain passou a mão de metal sobre a parte da terra que ainda estava seca e desenhou um rosto simples.
- Imagino...  – comentou para não deixar o vazio silencioso preencher o espaço entre os dois, em seguida, rabiscou o que poderia ser um cabelo naquele rosto marrom no chão. Na verdade, não imaginava. Não imaginava como alguém poderia querer uma vida como aquela, de dono de fazenda, e nem como um desgosto como a chuva estragar a plantação poderia ser pior do que continuar vivendo daquela forma. – E você, o que faz? – perguntou, apesar de já saber a resposta.
O homem estufou o peito, respirando fundo.
- Eu sou o ferreiro da cidade. Faço de tudo um pouco, quando se trata de trabalhar com metais. – respondeu ele, enquanto passava a mão na barba. Então pareceu que algo lhe veio à cabeça de repente. - A propósito, o que aquilo na sua mão? Parece trabalho de primeira linha!
- Ah, não é nada importante, só uma luva de aço-negro. Na Chama Cinzenta, chamam de Punho De Ferro, apesar de eu achar o nome um tanto quanto inapropriado. – Respondeu Cain, enquanto esticava a manga do manto e erguia a mão de aço-negro no alto, mostrando-a. O ferreiro inclinou-se para frente, interessando.
- É forjado com magia? – perguntou. Seus olhos cintilaram.
Cain deixou o braço cair e a manga escondeu a mão, deslizando por cima do aço. Depois, olhou para trás e viu que as gotas haviam diminuído sua frequência e caiam em número muito menor.
- Acho que está parando de chover. Vamos? – disse, interrompendo o assunto bruscamente, enquanto se levantava lentamente. Seu manto continuou completamente limpo, sem qualquer mancha de terra, do chão sobre o qual havia se sentado.
Jonathan achou melhor não insistir no assunto da mão, por isso resolveu que seria melhor ir. Apesar de tudo, não queria perder tempo além do necessário, estava fascinado com a possibilidade de ver um aluno da Escola em ação.
- Vamos, é por aqui. – respondeu, enquanto se levantava do caixote e andava em direção à parte onde a varanda não mais o protegia das gotas que ainda caiam.
Cain colocou o capuz e o seguiu.
Eles caminharam pela cidade vazia, atravessaram as ruas de terra e as casas mal construídas, sem dizer palavra alguma. Cain percebeu algumas pessoas nas janelas, escondidas atrás das cortinas, observando-o, como se fosse algum animal raro do qual tivessem medo.
Quando a lua surgiu no céu e os últimos raios de sol desapareceram no horizonte, Jonathan parou de frente a um sobrado, o que não quer dizer que fosse uma casa grande.
O homem bateu na porta com força e olhou para trás, repousando os olhos sobre Cain.
- Acho melhor você tirar o capuz, pode assusta-lo. Ele é meio velho, se é que me entende.
Cain jogou o capuz para trás e passou a mãos nos cabelos compridos, ainda completamente secos, afastando-os dos olhos. Então, um pequeno pedaço de madeira moveu-se na porta, abrindo um pequeno vão, onde dois grandes olhos encararam os dois homens do lado de fora. Em seguida, a porta foi aberta, com um rangido, mostrando um homem parado junto à soleira. Era um homem de idade muito avançada, mas era bastante alto, com olhos pequenos desenhados em um rosto coberto de rugas. O pouco cabelo branco que tinha sobre a cabeça estava despenteado, com algumas partes amassadas e outras arrepiadas, como se tivesse acabado de acordar.
- Jonathan, que surpresa agradável... – disse o velho, com uma voz mansa, como se falasse com uma criança. Em seguida, pousou os olhos sobre Cain e voltou-os para Jonathan quase que em seguida.
- Olá, Doyle, é um prazer ver que está bem. Espero não ter chegado em uma hora ruim. – disse o ferreiro, ao ver que o homem estava vestindo roupas de dormir e tinha os olhos cansados de sono.
Doyle pigarreou e sorriu com os poucos dentes que ainda restavam em sua boca.
- Claro que não, toda hora é hora de encontrar os amigos. – respondeu, mostrando uma gentileza sutil que não era tão comum em pessoas na idade dele. – E quem é esse seu amigo ai atrás?
Jonathan virou-se e estendeu a mão em direção a Cain, como se mostrasse um objeto que pretendia vender.
- Esse é o Cain, ele é enviado da Chama Cinzenta. – disse Jonathan, tentando demonstrar mostrar-se mais alegre do que parecia estar, abrindo um sorriso amarelo.
Doyle passou os olhos dos pés à cabeça de Cain.
- Ah sim... – começou ele, enquanto piscava os olhos e encarava o garoto, olhando-o com curiosidade. – Achei que vocês fossem mais velhos. Mas agora, entrem, por favor. Acabou de anoitecer e não se sabe o que espreita por ai. – completou, antes que Cain pudesse responder.
Cain olhou para Jonathan, que deu de ombros, e então              ambos entraram enquanto Doyle se afastava e abria a porta.
A sala era pequena e mal iluminada, simples como uma casa do interior tem o direito de ser. Os móveis eram poucos; uma mesa de madeira preenchia metade do espaço entre uma parede e outra, rodeada de pequenas cadeiras e banquinhos. Em um pequeno móvel em um dos cantos, três velas queimavam em um candelabro de cobre, trazendo uma tímida e amarelada luz para o local. No outro canto, um pequeno armário mostrava as louças da casa: meia dúzia de pratos e copos.
Doyle circulou a mesa e foi até o armário, onde abriu uma pequena porta na parte de baixo e tirou uma garrafa de vidro, então passou a mão sobre ela e a assoprou, tentando tirar o pó.
- Por favor, sentem-se. – disse, enquanto colocava a garrafa sobre a mesa e pegava três copos.
Cain olhou para o lado e viu que Jonathan já estava sentado, com o pé apoiado em outro banquinho. O garoto ficou aliviado por saber que Jonathan estava à vontade. Não que aquele homem pudesse fazer qualquer mal a ele. Longe disso. Mas por algum motivo, sentia-se um pouco inquieto quando se tratava de idosos. Então, puxou um banquinho e também se sentou.
Doyle encheu os três copos com o que parecia ser vinho e empurrou um para Jonathan e um para Cain.
- Então garoto, como foi de viagem? – perguntou, depois de bebericar o vinho.
Cain relaxou e se aconchegou no banquinho, depois levou a taça à boca e deu um grande gole. Fazia tempo que não bebia algo tão bom. A viagem tinha sido horrível; suas provisões haviam acabado no meio da viagem, pois, segundo as informações que tinha, encontraria a cidade em poucos dias. Graças a esse pequeno imprevisto, passou a viver de lebres mal cozidas, lagartos assados e outros animais que encontrou pelo caminho. Isso, fora as tempestades, que chegavam de repente, como golpes de chicote.
- Foi ótima. – respondeu prontamente, não querendo demonstrar que teve alguns problemas.
Jonathan olhou para Cain, de forma desconfiada.
- Tem certeza? Geralmente, os forasteiros tem dificuldade pra chegar aqui por causa da localização. Dizem que é uma cidadezinha afastada do mundo. – disse, soltando um riso abafado.
- Isso é verdade, é uma cidade um pouco distante das outras.
Doyle riu junto com o amigo. Em seguida deu um grande gole em seu copo e encarou Cain com seus olhos caídos, de forma interessada.
- Distantes das outras? É assim que preferidos, sabe? Sem muito contato com o mundo exterior. Os homens das grandes cidades tendem a complicar muito as coisas, dar nomes estranhos às coisas, usar engrenagens e correntes para tudo. – disse, com sua voz calma. Depois de uma pequena pausa, continuou. – vivendo aqui, pagamos muito menos impostos, temos espaço para fazermos o que quisermos e as nossas crianças não precisam ter medo de brincar fora de casa.
Cain sabia a verdade. Sabia que o homem estava mentindo. Na Chama Cinzenta, havia recebido a informação de que ali, naquela pequena cidadezinha, funcionava uma pequena rede que ajudava no comércio de escravos para Ikhar’e. Era quase um posto de descanso para os traficantes de escravos, pois a estrada que ali passava, dava direto em Greedbay. Os homens ali, se aproveitavam disso e davam comida e estadia para os traficantes e suas caravanas. Aquilo irritava Cain profundamente, mas não era aquilo que havia ido tratar, então não havia motivos para criar problemas.
- Ah, entendo. – disse, enquanto dava o último gole em seu copo e o colocava sobre a mesa, vazio.
Doyle o encheu novamente, depois voltou os olhos para o garoto.
- Você pode ficar aqui em casa, se quiser. Até terminar o trabalho. – disse, depois apontou para as escadas no fundo do aposento. – Só eu e a minha filha moramos aqui, então temos um quarto vago para hóspedes.
Cain sabia que tipo de hóspedes Doyle alojava, mas recusar a oferta seria demasiado grosseiro, por isso, sorriu abertamente.
- Claro. Seria um prazer.
Um silêncio irrompeu no local durante os segundos seguintes. Cain tinha certeza que os dois homens queriam abordar o trabalho que ele faria, de uma maneira que não parecesse tola, por isso, deviam estar pensando muito em como começar a falar sobre isso. Então, achou melhor ele próprio começar.
- Vocês tem alguma informação sobre a criatura? – achou melhor ser direto.
Doyle e Jonathan ficaram parados, sem fazer movimento algum. Parecia que, falar sobre aquele assunto, não os agradava, pois em seguida, seus olhos correram pelo aposento rapidamente.
- Fale disso baixo, menino! – irrompeu Doyle, sussurrando de forma ríspida, inclinando-se sobre a mesa. – Não sabe como essas coisas são?
Cain passou a mão em seus cabelos, afastando-os do rosto. Estava claro que aqueles sujeitos supersticiosos teriam medo da própria sombra em uma noite sem lua.
- Não se preocupem, já protegi a casa contra malefícios. – disse, de forma branda. Claro que era mentira, mas não havia forma de explicar para os dois sujeitos ignorantes do interior, que não havia problemas em falar em sua casa, seu local sagrado, do que para eles, podia ser qualquer coisa parecida com um demônio.
Doyle encarou Cain, com os olhos semicerrados.
- Tem certeza? Eu não vi nada disso e muito menos lhe dei permissão pra fazer essas coisas na minha casa.
Cain bufou. Estava ficando cansado daquele joguinho. Provavelmente, os dois sujeitos temiam qualquer tipo de menção a magia ou qualquer coisa que desconhecessem a essência. Apesar disso, deviam achar que ele é como os magos de meia tigela que deviam ter passado pela cidade e ajudado a consertar objetos quebrados ou vendido anéis com falsas propriedades, por isso, resolveu fazer uma demonstração.
- A magia trabalha de formas sutis. Vocês não podem vê-la, ouvi-la, mas isso não quer dizer que ela não está aqui.
Doyle parecia ainda não acreditar e, apesar de estar certo, Cain não queria deixar transparecer que queria falar livremente sobre criaturas da noite dentro da casa do homem sem ter jogado qualquer feitiço de proteção. Precisava dar um jeito de engana-los, faze-los acreditar que podiam falar sobre o que quisessem ali dentro, mesmo que já fosse noite, pois havia alguém ali que eles não haviam notado. Alguém que os protegeria de qualquer coisa ruim que pudesse acontecer e, pensando melhor, talvez esse alguém tivesse realmente lançado qualquer proteção. Mas na dúvida, Cain resolveu que seria melhor aplicar algo ali.
- Vejam bem. – disse Cain, enquanto enfiava a mão no bolso dentro de seu manto. – Tenho a sua permissão?
Doyle assentiu com a cabeça, curioso.
Cain tirou de dentro do manto, um pequeno pedaço de giz branco e ali, sobre a mesa, desenhou um pequeno círculo. Dentro dele, um pequeno retângulo, com setas saindo das quatro extremidades, apontando para os quatro cantos da sala. Em volta do círculo, desenhou as letras A S D S E T, de forma muito simétrica. Novamente dentro do círculo, desenhou algumas inscrições que se assemelhavam com uma meia lua, duas lâminas de foices e uma calda com a ponta de seta.
Jonathan afastou um pouco o corpo, inclinando-o para trás, com os olhos bem abertos pousados sobre o círculo.
- O que é isso? – perguntou.
- Isso, Jonathan, é o segredo do sucesso de um mago. – respondeu Cain, enquanto pegava o próprio copo e o virava, deixando cair duas gotas de vinho exatamente no centro do retângulo. Em seguida, colocou os dedos indicadores nas duas extremidades do círculo e fechou os olhos. Então, murmurou.
- Circa effusus vinum, flamma crescant. Jurat in occulta atque fulgentem luna, pro anguis Reptantesque. Flamma crescant.Flamma crescant.
Em poucos segundos, da minúscula poça cor de sangue ali feita pelas gotas da bebida, uma pequena luz acendeu. Logo, a pequena luz cresceu, sob a forma de uma pequena chama avermelhada, que dançou perante os olhos dos dois indivíduos. Em seguida, apagou-se por completo e Cain abriu os olhos.
Doyle e Jonathan observavam o garoto, de boa aberta, como se ele fosse magia em carne e osso.
Ainda incrédulo com o que acabou de presenciar, Doyle passou a mãos nos olhos, esfregando-os vigorosamente.
- Isso... isso foi magia de verdade? – perguntou estupefato, como se lhe faltassem palavras.
Cain riu baixinho, tampando a boca com as costas da mão. Adorava ver como as pessoas comuns reagiam ao presenciar tal experiência. Era como contar mil vezes a mesma piada e continuar a achar graça.
- Na Escola, não chamamos de magia. Temos vários nomes e termos técnicos, por exemplo, aqui, eu apliquei a Siglística em uma série de runas simples, depois usei a Nomenclatura para igualar o nível térmico do vinho... – começou Cain, mas parou no meio da frase, ao perceber que os sujeitos o olhavam como se ele falasse outra língua, por isso, resolveu exemplificar. – Apesar de tudo isso, pra vocês, isso foi magia e isso que importa.
Jonathan pareceu mais interessado do que assustado. Parecia à beira de um milhão de perguntas, mas as engoliu. Em vez de fazê-las, percebeu que seria melhor ir direto ao assunto, pois ali estava provado que o garoto a sua frente não era pura e simplesmente um garoto comum que veio da cidade. Havia percebido isso ao encontra-lo no meio da chuva e agora, essa demonstração havia reforçado seu pensamento.
- Acho que isso resolve a questão, não Doyle?
O velho assentiu, agora encarando o garoto com outros olhos. Seu olhar, antes cansado e pouco desperto, parecia envolto de curiosidade e possivelmente, um pequeno temor.
- Bom, já que estamos resolvidos, me falem sobre essa criatura. – disse Cain, enquanto empurrava o copo da direção de Doyle, para que ele o enchesse.
- Bom, não sabemos muito dela, pra falar a verdade. Eu mesmo não a vi. – começou, enquanto derramava o líquido dentro do copo lentamente. Parecia estar falando mais baixo do que o normal, apesar de tudo, como se temesse que, seja lá o que fosse a coisa da qual queriam se livrar, estivesse lá fora, tentando ouvir a conversa. – Os cidadãos dizem que se parece com uma mulher alta, de pele branca e cabelos escuros, que anda nua pelas ruas da cidade quando a noite cai. Ela invade as casas sem arrombar as portas, sem quebrar as janelas, como se o fizesse com magia, e estrangula as garotas mais novas. Tudo sem qualquer barulho, como se nem os seus passos nos pisos de madeira emitissem qualquer som... – continuou, enquanto colocava a garrafa, agora vazia, sobre a mesa e empurrava o copo de volta.
Cain ficou quieto durante algum tempo, refletindo. Levou a mão à testa, o cotovelo à mesa e ficou apoiado, de olhos fechados.
- Conte-me mais. Quantas garotas ela já levou? Quais as idades delas? Eram virgens?
- Levou quatro das nossas garotas, eram jovens moças, com não mais do que dezesseis anos cada uma. Imagino eu que algumas delas fossem virgens sim, por quê?
Cain voltou a calar-se. Permaneceu assim por vários minutos, em seus panoramas mentais, refletindo.
- Acho que é uma Quasyt. – disse Cain, ainda de olhos fechados. Não estava realmente certo disso, as informações eram muito poucas para se chegar a uma conclusão final. As criaturas da noite eram de centenas de tipos e muitas agiam de formas parecidas.
- E o que isso? – perguntou Jonathan, falando a frente de Doyle.
- É uma criatura da noite, como vocês já devem suspeitar. – começou Cain, afastando os cabelos do rosto e jogando-os para trás. – Ela aparece exatamente nessa forma, faz exatamente essas coisas. Costumamos apelida-la de Ladra de Fôlego na Chama Cinzenta, pelo modo como ela age. Asfixiando, sabe? – ambos assentiram com a cabeça. – o problema é que ela geralmente tende a ser um espírito ligado à vingança e eu não sei o que ela pode estar querendo vingar. Acho que vou ter que mata-la sem saber.
Doyle finalmente pareceu animado com a conversa. Abriu um pequeno sorriso e seus olhos se estreitaram, empurrado pelas bochechas flácidas.
- Você pode mata-la? Jura? – perguntou ansioso.
- Claro, se pode andar, pode morrer. – respondeu Cain, de forma ríspida.

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O quarto estava escuro e as únicas fontes de luz, eram a lua cheia, que cintilava prateada na grande janela de vidro e uma pequena vela, com não mais do que alguns poucos centímetros de altura, repousada em um prato de porcelana sobre a cômoda. O aposento não era nada grande, mas parecia cheio por conta dos móveis. Uma cadeira de madeira, a já citada cômoda ao lado da cama, a própria cama e um pequeno armário próximo da porta.
Cain estava apenas com sua calça, sentado sobre a pequena cama com colchão de palha, virado de costas para a janela. A lua iluminava várias cicatrizes prateadas que cruzavam a sua pele em vários formatos diferentes. Além das cicatrizes, lá havia algumas marcas diferentes, escuras, com os mais diversos símbolos desenhados, como que em tinta preta.
Mas não, não havia apenas isso naquele quarto. Lá, estava repousando algo que poucos perceberiam a presença. Algo maravilhoso e belo, que não pertencia, de forma alguma ao lugar em que se encontrava. Algo que estava além da compreensão dos dois grosseirões que Cain acabou de conhecer.
- Aquela conversa demorou demais, meu querido. – disse uma voz baixa e feminina, vindo da escuridão onde, tanto a luz da lua quanto a luz da vela não conseguiam, ou temiam, iluminar. Era uma voz sedutora, leve como uma folha carregada pelo vento.
Cain sorriu ao perceber quem estava ali com ele.
- Nem percebi que já tinha voltado. – disse, enquanto encolhia os pés para cima da cama e massageava a sua sola. – meus pés estão doendo horrores, acho que vou ter que amputa-los. – brincou.
- Eu os amputo, se me fizer massagem nas costas e um chá quente de ervas. – respondeu a voz, em tom ainda mais brincalhão. Em seguida, deu uma risadinha doce e singela, como de uma criança. – Eu devia te estrangular. Fazer com que eu fique naquela forma por tanto tempo, te protegendo da chuva, é cansativo demais!
Logo, a dona da voz adentrou na parte iluminada. Tratava-se de uma mulher, uma bela mulher, mais bela do que poderia ser descrita com palavras de qualquer língua mortal. Sua pele era muito alva, iluminada pela luz prateada do luar. Alvos também eram seus cabelos, brancos e pálidos, porém lisos e compridos, descendo-lhe na altura de seus seios muito fartos. Seu corpo era escultural, digno de ser pintado em quadros, como os deuses esquecidos de antigamente, pois era magro e bem torneado, perfeitamente simétrico e imaculado, coberto parcialmente por um curto vestido, branco como seus cabelos, que lhe desciam na altura das coxas. Já seu rosto, era perfeitamente anguloso, fino e liso, límpido e sem marcas, adornado por uma pequena máscara que cobria seu nariz até a sobrancelha. Uma máscara preta e sem adornos, com as extremidades levemente repuxadas. Não era uma mulher comum, sua beleza não era como a beleza de um mortal, era muito mais profunda, muito mais pura, como a própria beleza haveria de ser se tivesse uma forma física.
- Desculpe! – riu-se Cain, enquanto esticava a perna na direção da mulher. – primeiro você. – disse, com um sorriso no rosto. Pela primeira vez, desde que chegou à cidade, sorriu de forma sincera. Feliz.
A mulher abaixou-se, encarando o garoto com um olhar que misturava frustração e diversão ao mesmo tempo. Então segurou o pé esticado à sua frente, pelo calcanhar e começou a fazer cócegas. Cain começou a rir, primeiro baixinho, depois cada vez mais alto, enquanto seu corpo parecia à beira de espasmos. Ele tentava, durante isso, puxar o pé e livrar-se das mãos da mulher, mas seus esforços eram fracassados.
- Eu, Lilith, Dama Da Noite e Serpente-Rainha, estou banindo em nome dos...  – Cain tentou puxar com mais força e riu ainda mais alto. – Dá pra parar de gritar? Estou tentando banir esse encosto folgado que te segue!
O garoto, desesperado, atirou-se na direção da mulher, saltando de cima da cama. Ambos rolaram pelo quarto, embolados um ao outro, aos risos. Afinal, conseguiu livrar o calcanhar dos dedos de Lilith, claro, ela havia deixado. É impossível que ele tivesse força para se soltar se ela não quisesse fazê-lo.
- Sua bruxa malvada! – disse Cain em tom brincalhão, enquanto tentava recuperar o fôlego e se afastava da mulher, ficando ajoelhado sobre o chão de madeira. – Sabe que eu odeio cócegas.
- E eu odeio passar o dia todo na forma de um casaco, querido. – respondeu ela, prontamente, imitando a posição do garoto de forma irônica e apontando o dedo indicador para o garoto. – Nunca mais vou vesti-lo, não importa se estiver chovendo ácido ou fogo!
Cain inclinou-se para frente e encarou Lilith nos olhos, com uma expressão maliciosa no olhar. Os doces olhos esverdeados dela cintilaram na escuridão.
- Quer dizer que não gosta de ficar com o seu corpo colado ao meu por tanto tempo? – perguntou, tentando afastar a vontade de rir que subia pela sua garganta.
Antes que Lilith pudesse responder qualquer coisa, ouviu-se o som de alguém batendo na porta do quarto. Uma batida leve e delicada, então Cain logo suspeitou que não se tratava de Doyle.
- Você selou o quarto contra sons? – perguntou Cain, aos sussurros, assustado.
- É claro que selei, meu querido. – respondeu Lilith, tocando o rosto do garoto com a ponta dos dedos. Então sua voz saiu um pouco mais sedutora do que de costume. – Acha que eu quero mesmo que aquele velho rabugento escute os seus gemidos no meio da noite?
Cain virou o rosto.
- Se esconde, faz alguma coisa. E, por Eltharys, nada incomum! – disse, enquanto se levantava vagarosamente do chão e ia em direção à porta. Confiando em Lilith, nem se virou para olha-la antes de abrir a porta.
Cain se assustou ao perceber que, do lado de fora do quarto, uma garota estava parada. Era um pouco mais nova que Cain, a julgar pela sua aparência, não passando dos catorze anos. Era baixa e bonita, seus cabelos eram louros e lisos, dourados como trigo, enrolados em algumas trancinhas, contornando seu rosto branco, com algumas sardas de sol. Ela vestia uma roupa comum de dormir, com uma calça e uma blusa leves e confortáveis, de lã barata.
- Você é o Cain? – perguntou ela em voz baixa, com uma doce voz que só uma garota de cidadezinha podia possuir.
- Sou sim. Você é a filha do Doyle, não? – respondeu Cain, imitando a voz baixa dela.
Ela assentiu com a cabeça. Apesar de todas as marcas e desenhos à tinta pelo corpo do garoto, seus olhos repousaram na mão direita dele, onde o Punho De Ferro fechava-se em torno de sua pele.
- Ah, isso aqui? – perguntou Cain, esticando o braço em direção a ela. – Ele em vários significados e várias utilidades para nós. Pena que depois que a colocam, não dá mais para tirar. - Ao perceber que a garota pareceu meio um pouco chocada, completou fazendo uma careta. – Dói horrores colocar isso aqui.
A garota sorriu timidamente e voltou os olhos aos do garoto à sua frente. Pausou alguns segundos, provavelmente pensando nas palavras que iria usar, mas então fez a pergunta que tanto queria.
- Você é mesmo um mago? Um bruxo?
Cain não queria assustar a garota, por isso, resolveu contornar a situação. Geralmente, faria alguma coisa queimar ou estalar, algum clarão de luz, e isso resolveria a questão. Mas ali não, não queria afugenta-la.
- Não sou bem um mago, não como os que você está costumada ouvir nas histórias. Nós só falamos que somos para assustar as pessoas sensatas. E, bem, você não deve ser muito sensata, vindo ao quarto de um homem, a essa hora da noite, com a probabilidade dele ser um mago ou bruxo.
Ela riu baixinho, levando a mão à boca, para abafar. Em seguida, olhou ao redor, preocupada com o som que acabou de fazer.
- Então, o que você é se faz magia e não é um mago?
Cain olhou para ela, procurando uma resposta à altura da pergunta. Nunca tinha pensado realmente em como responder esse tipo de pergunta.
- Veja bem... Como é mesmo o seu nome? – perguntou.
- Sofia.
- Veja bem, Sofia. Magia é o nome que as pessoas dão aos fenômenos que desconhece... por exemplo. – fez uma pausa e levou a mão à boca, pensativo. – por exemplo... pegue uma pessoa que nunca teve contato com o álcool. Depois, pegue um copo e encha de álcool e jogue um fósforo aceso. O que ele vai pensar ter visto é alguém colocando fogo no que ele imagina ser água, logo vai ligar isso à magia, entende o raciocínio?
- Sim. Acho que sim.
- Pois bem, é isso. Magia é o nome que as pessoas dão ao desconhecido.
Sofia olhava Cain fixamente, como se ele fosse um animal exótico. Claro que ela não devia estar acostumada àquele tipo de gente em sua casa, ou talvez àquele tipo de conversa, por isso era totalmente compreensível.
- O que foi? Tem certeza que entendeu?
- Não, não é isso. – respondeu a garota enquanto sorria de canto de boca. Ambos ficaram se olhando durante algum tempo.
Cain parou então para pensar. O que teria dado na cabeça daquela garota de ir ao encontro de um mago no meio da noite? Isso não era insensatez, era burrice! Com isso na cabeça, decidiu ler a garota.
Concentrou-se durante alguns segundos, fazendo força para não fechar os olhos. Conectou-se lentamente com o íntimo de Sofia, ligando as ramificações de suas emoções às dele próprio e então finalmente percebeu. Havia uma grande angústia nela.
- Tem algo que incomodando? – perguntou, fingindo ainda ter dúvidas sobre isso, enquanto abaixava e a olhava nos olhos. – Pode me contar, não tenha medo. Não vou lhe fazer mal algum.
Ela hesitou. Olhou para baixo e encarou os dedos dos pés descalços sobre o assoalho. Cain sabia que ela precisava de tempo para responder, então não insistiu.
- Se não quiser falar, tudo bem, Sofia.
Ela demorou, ficou calada durante algum tempo, mas finalmente falou.
- Tenho medo de que ela venha atrás de mim. Sinto pavor de dormir, todas as noites, acho que ela está entrando na minha casa, subindo as escadas...
Cain esticou o braço e tocou o rosto dela com a mão esquerda, roçando a ponta dos dedos em sua bochecha, assim como Lilith fazia com ele.
- Não se preocupe. Pelo menos essa noite, você pode dormir sossegada. Eu estou aqui e selei essa casa com magia poderosa. Mesmo assim, se ela conseguir entrar aqui, apesar de todas as proteções que coloquei, eu ficarei sabendo rapidinho e, juro pelo brilho dos meus olhos, que não deixarei que toque em você. - Então, com o dedo indicador, tocou o queixo de Sofia e puxou-o para cima, levantando o seu rosto delicadamente. – entendido?
Ela o fitou e Cain sentiu que uma pequena fagulha iluminou o interior dela. Não era muito, mas era alguma coisa.
- Mas os seus olhos não brilham... – disse ela, fitando-o.
Cain fez uma cara desconcertada. Não imaginou que ela repararia nisso tão rapidamente.
- Então eu juro pela cor do meu sangue. – disse ele. Mal sabia ela que também não podia jurar pelo sangue.  – agora, vá dormir, antes que o seu pai acorde e ache que estamos fazendo algo errado. – completou, enquanto movimentava a mão como se espantasse um cachorro.
- Tudo bem. Obrigado. – sorriu ela, enquanto virava o rosto e andava lentamente pelo corredor escuro lá fora, tentando não fazer barulho quando pisava no chão de madeira.
Cain fechou a porta e apoiou a mão nela, em seguida, respirou fundo e bufou.
- Achei que ia beija-la. – disse Lilith às suas costas, fingindo uma voz brava.
Cain virou-se para ela, seus olhos escuros estavam agora avermelhados, em sua parte branca e brilhavam. Não o brilho comum dos olhos. Brilhavam cheios de lágrimas.
Lilith caminhou em sua direção e colocou seus braços em volta dos ombros do garoto, confortando-o com o calor de seu toque sutil e repleto de magia. Logo, Cain soluçava pesadamente, com as mãos à frente do rosto.
- Está tudo bem, meu querido. Pode chorar, faz bem e limpa a alma. – sussurrava ela em seu ouvido, enquanto passava a mão em seus cabelos. – Eu te amo, está tudo bem. Está tudo bem. Calma.
Cain chorou como não chorava a tempos. Ali, acolhido nos braços da criatura mais linda a pisar sobre a terra, deixou as lágrimas rolarem pelo seu rosto pálido como a morte. Rolarem de seus olhos escuros e cansados, repletos da mais profunda melancolia.
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Quando clareou, Cain estava deitado na cama, com a cabeça sobre as pernas de Lilith e os olhos fechados. Estava mais calmo, apesar de ter chorado por horas e horas sem parar.
A luz do sol irrompeu no horizonte e iluminou o quarto completamente quando Cain resolveu finalmente se levantar dali. Abriu os olhos e encarou Lilith, que lhe observava com um olhar calmo e simpático e passava a mão em seu cabelo. Ela sabia que ele não havia dormido, ele nunca dormia durante a noite, por isso achou que qualquer pergunta do tipo seria inútil, por isso, permaneceu quieta.
- Já sabe como vamos derrotar essa Quasyt? – perguntou, tentando encontrar algum assunto que não fosse sua choradeira da noite passada.
Lilith sorriu e seus olhos verdes como esmeraldas piscaram por trás da máscara.
- Do mesmo jeito de sempre, meu querido. – respondeu ela, pacientemente. – Eu faço tudo sozinha e você ficará deitado em algum lugar me gritando palavras de apoio, folgado como é.
Cain sorriu e Lilith se inclinou para baixo e o beijou, tocando-o com seus lábios quentes e avermelhados. Eles ficaram quietos durante algum tempo, apreciando a companhia um do outro, mas logo se ouviu uma batida na porta. Uma batida pesada que, claramente, não pertencia a Sofia.
- Cain? Sou eu, o Doyle. – ouviu-se a voz cansada do velho lá fora.
Cain levantou-se, preguiçoso, enquanto seus ossos estalavam em mil sons diferentes e foi em direção à porta. Lilith não se moveu.
O garoto abriu uma fresta da porta e viu o homem ali, parado, olhando-o com um pequeno sorriso estampado no rosto.
- Tem pão e leite na mesa. Pode pegar uma fatia de queijo e alguma fruta se quiser, eu vou trabalhar e estou levando a Sofia comigo, tudo bem?
Cain balançou a cabeça, concordando, então bocejou pesadamente, sem fazer questão de levar a mão à boca.
- Diga-me, vai resolver aquela questão ainda hoje? – perguntou Doyle, com um olhar suspeito.

















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