quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A noite - Cain


Oh, doce deleite, que emana de meu despojado ser, carente de espírito e qualquer outro tipo de afeto humano. O sol já havia se posto, por trás das escuras montanhas do oeste e um denso negrume cobriu toda a imensidão afável, quase carinhosa, para com o meu próprio eu.  Bela dama formosa que me era o anoitecer. Nós dançávamos sua melodia cintilante e sombria, enamorados. Eu, pela penumbra pós-crepúsculo. Ela, por me ter como amante.
A foice minguante cintilava prateada, como solidão pálida, reinando sobre as outras estrelas, com sua luz esbranquiçada, mostrando-me os caminhos menos turbulentos em meio aos perigos da noite. Mas claro, o maior perigo da noite, era eu.
Logo me postei a avançar em direção ao caminho sombrio da madrugada. Embriagado pelo manto escuro, com todas aquelas forças inconstantes que me percorriam, logo encontrei a primeira presa.
Certamente essa não fora a minha caçada inicial. Não seria eu, digno de tanta experiência, mesmo sedento pelos líquidos encantadores, logo em minha primeira vez. Longe disso, a minha primeira caçada foi puramente bestial, repleta de sentimentos incontroláveis, pois eu estava faminto. Era uma criatura errante na noite, caminhando incólume, intocado pela beleza ímpar digna de ‘nossos’ feitos. Eu, de forma mundana e incoerente, apenas me atirei sobre a vítima, dilacerando seu pescoço com os dentes afiados, enquanto o calor borbulhava em minha garganta, o calor da vida que acabara de ser ceifada pela minha sede animalesca.
Eu a havia mutilado completamente, mas a mesma recusava-se a morrer! A sangria incessante vinha de seus pulsos, pescoço e vários outros locais onde o meu apurado olfato farejava vida. Ela continuava ali, lutando debilmente contra o frio que cobria completamente o seu ser. Arranhando-me fracamente, enterrando as garras em minha pele pálida.
Quando saciado, não encontrei alternativa se não, terminar aquela fraca e vã existência, de modo rápido. Sofrimento não era mais necessidade para aquela prostituta. A simples contemplação de tal criatura, tão promíscua, tão tocada, depois de eu ter tido os meus próprios espasmos de prazer, causava-me a mais completa repulsa. Sim, espasmos de prazer. Exóticos, mas mesmo assim, espasmos de prazer. Por isso, não me tardei a esconder o que sobrou de sua pútrida carne inútil.
Sem demais devaneios nostálgicos, aqui estou eu novamente, trajando meu manto de sombras e cinzas, pálido como apenas as neves e as nuvens tem o direito de ser. Ali à frente, está sentada a pequena Annabela.
 - Ah, Annabela. Eu poderia amar-te pela eternidade. Seriamos apenas nós dois, para sempre, vivendo como servos da noite, vivendo em nossa eterna e constante batalha interna contra o enlouquecimento, durante o passar das eras.
Tomado pela luxúria, Annabela se aproxima sem cautela, como uma lebre atraída em uma armadilha. Eu a amo, do modo mais puro, do modo mais espiritual, que a minha própria não-vida é capaz de proporcionar.
Amarante! Este sou eu tecendo-lhe uma teia de elogios, de amores e sonhos de uma vida nova, longe de todo o marasmo terrível da cidade grande. Risos e brincadeiras são envolvidos por seus lábios puramente infantis, docemente belos. Por isso, eu lhe falo sobre coisas que ela jamais veria. Sobre dias que jamais passaria. Sobre uma vida que ela não viveria.
Não! Não julguem esse pobre servo da noite. Os sussurros em meio ao assobio do vento noturno estão errados. Eu a amo, a amo mais do que amo a mim mesmo. Amo da forma que um músico ama sua música, da forma que um marinheiro ama o mar. Eu poderia leva-la para uma vida trivial e fútil, sem desejos inalcançáveis. Poderia leva-la para longe daquela vida humana e tão curta. Mas não sou de uma total maldade.
- Annabela, eu queria que esta noite durasse para sempre.
E ela realmente durou, pois em sua cama de lençóis brancos, escorreu o doce vinho interior, manchando sua pureza com o calor avermelhado. Meus lábios, como os de uma criança que acabara de comer amoras, grudados ao pescoço, agora pálido e frouxo em minhas mãos.
Ah, nada como a vida descendo pela sua garganta. A vida em sua forma mais usual, impactante e, porque não, pura? Como um espírito mágico crescendo, enigmático, em suas estórias inacabadas. Seus olhos escuros -pingos de tinta negra- agora sem cor, sem brilho. Desculpe-me Annabela, juro pela noite e por suas estrelas, que eu a amei. Mas a vida humana, para mim, se passa em um piscar de olhos; e priva-la de seu descanso, tornando-a uma caminhante eterna em meio às sombras, é algo muito pior do que parece.


Nenhum comentário:

Postar um comentário