Oh, doce deleite, que emana de meu despojado ser, carente de
espírito e qualquer outro tipo de afeto humano. O sol já havia se posto, por
trás das escuras montanhas do oeste e um denso negrume cobriu toda a imensidão afável,
quase carinhosa, para com o meu próprio eu.
Bela dama formosa que me era o anoitecer. Nós dançávamos sua melodia cintilante
e sombria, enamorados. Eu, pela penumbra pós-crepúsculo. Ela, por me ter como
amante.
A foice minguante cintilava prateada, como solidão pálida, reinando
sobre as outras estrelas, com sua luz esbranquiçada, mostrando-me os caminhos
menos turbulentos em meio aos perigos da noite. Mas claro, o maior perigo da
noite, era eu.
Logo me postei a avançar em direção ao caminho sombrio da
madrugada. Embriagado pelo manto escuro, com todas aquelas forças inconstantes
que me percorriam, logo encontrei a primeira presa.
Certamente essa não fora a minha caçada inicial. Não seria
eu, digno de tanta experiência, mesmo sedento pelos líquidos encantadores, logo
em minha primeira vez. Longe disso, a minha primeira caçada foi puramente
bestial, repleta de sentimentos incontroláveis, pois eu estava faminto. Era uma
criatura errante na noite, caminhando incólume, intocado pela beleza ímpar
digna de ‘nossos’ feitos. Eu, de forma mundana e incoerente, apenas me atirei
sobre a vítima, dilacerando seu pescoço com os dentes afiados, enquanto o calor
borbulhava em minha garganta, o calor da vida que acabara de ser ceifada pela
minha sede animalesca.
Eu a havia mutilado completamente, mas a mesma recusava-se a
morrer! A sangria incessante vinha de seus pulsos, pescoço e vários outros
locais onde o meu apurado olfato farejava vida. Ela continuava ali, lutando debilmente
contra o frio que cobria completamente o seu ser. Arranhando-me fracamente,
enterrando as garras em minha pele pálida.
Quando saciado, não encontrei alternativa se não, terminar aquela
fraca e vã existência, de modo rápido. Sofrimento não era mais necessidade para
aquela prostituta. A simples contemplação de tal criatura, tão promíscua, tão tocada,
depois de eu ter tido os meus próprios espasmos de prazer, causava-me a mais
completa repulsa. Sim, espasmos de prazer. Exóticos, mas mesmo assim, espasmos
de prazer. Por isso, não me tardei a esconder o que sobrou de sua pútrida carne
inútil.
Sem demais devaneios nostálgicos, aqui estou eu novamente,
trajando meu manto de sombras e cinzas, pálido como apenas as neves e as nuvens
tem o direito de ser. Ali à frente, está sentada a pequena Annabela.
- Ah, Annabela. Eu poderia
amar-te pela eternidade. Seriamos apenas nós dois, para sempre, vivendo como
servos da noite, vivendo em nossa eterna e constante batalha interna contra o
enlouquecimento, durante o passar das eras.
Tomado pela luxúria, Annabela se aproxima sem cautela, como
uma lebre atraída em uma armadilha. Eu a amo, do modo mais puro, do modo mais
espiritual, que a minha própria não-vida é capaz de proporcionar.
Amarante! Este sou eu tecendo-lhe uma teia de elogios, de
amores e sonhos de uma vida nova, longe de todo o marasmo terrível da cidade
grande. Risos e brincadeiras são envolvidos por seus lábios puramente infantis,
docemente belos. Por isso, eu lhe falo sobre coisas que ela jamais veria. Sobre
dias que jamais passaria. Sobre uma vida que ela não viveria.
Não! Não julguem esse pobre servo da noite. Os sussurros em
meio ao assobio do vento noturno estão errados. Eu a amo, a amo mais do que amo
a mim mesmo. Amo da forma que um músico ama sua música, da forma que um
marinheiro ama o mar. Eu poderia leva-la para uma vida trivial e fútil, sem
desejos inalcançáveis. Poderia leva-la para longe daquela vida humana e tão
curta. Mas não sou de uma total maldade.
- Annabela, eu queria que esta noite durasse para sempre.
E ela realmente durou, pois em sua cama de lençóis brancos,
escorreu o doce vinho interior, manchando sua pureza com o calor avermelhado.
Meus lábios, como os de uma criança que acabara de comer amoras, grudados ao
pescoço, agora pálido e frouxo em minhas mãos.
Ah, nada como a vida descendo pela sua garganta. A vida em
sua forma mais usual, impactante e, porque não, pura? Como um espírito mágico
crescendo, enigmático, em suas estórias inacabadas. Seus olhos escuros -pingos
de tinta negra- agora sem cor, sem brilho. Desculpe-me Annabela, juro pela
noite e por suas estrelas, que eu a amei. Mas a vida humana, para mim, se passa
em um piscar de olhos; e priva-la de seu descanso, tornando-a uma caminhante
eterna em meio às sombras, é algo muito pior do que parece.
Nenhum comentário:
Postar um comentário