David via, apesar de ainda ser noite fechada. Chovia muito fora de seu quarto. Grossas gotas desciam de um céu tempestuoso naquela madrugada de sexta-feira, e chocavam-se fortemente contra o vidro. Do lado de fora, raios desciam das nuvens em linhas pálidas, clareando por alguns segundos, o mundo lá fora.
Havia vales e montes, cobertos de grama verde-clara e árvores velhas de troncos grossos, cujos galhos balançavam com o vendaval que soprava. Do lado de fora, as coisas aconteciam, do lado de dentro não.
David acordara cedo demais naquela melancólica madrugada de janeiro, mas ainda estava em sua cama, deitado de lado, virado para a janela. Os ponteiros do velho relógio de cabeceira ao lado da cama mostravam que ainda eram quatro horas da manhã. David era um garoto de doze anos, esquelético e alto, de uma palidez quase doentia. Seus olhos eram de um profundo negro, denso como a noite lá fora, assim como seus cabelos espessos e lisos.
Ele se revirou na cama. Estava todo salpicado de suor e gotas salgadas percorriam-lhe o rosto. Havia despertado no meio da noite, talvez devido ao nervosismo, talvez devido à ansiedade, coisa que andava acontecendo com maior frequência enquanto o grande dia se aproximava. Esfregou os olhos com as costas da mão e bocejou sem fazer barulho. Empurrou os grossos cobertores de cima de seu corpo e sentou-se na borda da cama. Sua boca estava seca havia muito tempo, mas a preguiça que sempre o acompanhava, o havia impedido de levantar para pegar água, mas agora estava insuportável. Abaixou-se no chão e tateou no escuro, até encontrar seu par de chinelos de lã cinzenta. Calçou-os e saiu do quarto.
O corredor estava coberto por uma penumbra sólida, mas pela primeira vez, não se sentiu amedrontado. Atravessou o corredor e chegou à escada de madeira que separava os andares do sobrado. Desceu-a com cuidado para não fazer um único ruído, pois não queria acordar sua mãe, e chegou a sua sala de estar que era embutida com a cozinha em um único cômodo.
O lugar estava completamente escuro, mas David conseguiu passar pelo sofá bege sem esbarrar nele. Acendeu a fraca luz de uma luminária que clareou parte do ambiente e foi até a geladeira. Abriu-a e pegou uma garrafa de vidro. Inclinou a cabeça para trás e bebeu o liquido no interior como se tivesse sede á dias. A água estava gelada e desceu pela sua garganta como um presente dos deuses.
Falta tão pouco tempo pra eu ganhar a minha licença. Pensou preocupado enquanto devolvia a garrafa na geladeira e a fechava. Falta tão pouco para eu me tornar um treinador. Pensar nisso lhe causava uma sensação esquisita. Adiara esse destino por dois anos, já que a licença podia ser ganha por qualquer garoto com dez anos ou mais.
David apoiou a mão na porta da geladeira e soltou o peso, enquanto abaixava a cabeça. Estava preocupado, realmente preocupado, como uma angústia que tira todo o ar do pulmão, como o medo que coloca todo o peso do mundo em seus ombros. Não se sentia preparado, de forma alguma, para o destino que se aproximava. Claro que esse era o seu desejo, todo o garoto desejava isso desde... bem, desde sempre e não iria desistir disso, não tão cedo. Mas o sentimento de estar livre, para andar sozinho por ai, era algo que lhe assustava muito. Todo o ser humano quer ter o gosto de liberdade, mas no fundo, sempre quer voltar para casa depois da aventura e ele não poderia fazer isso. Mas esse é realmente o meu medo? Eu tenho medo de não conseguir e voltar pra casa com o rabo entre as pernas? Pensou. Ou eu tenho medo de simplesmente não conseguir? As coisas nunca mais seriam as mesmas, eu seria simplesmente o primeiro garoto a voltar...
Sabia que não conseguiria mais dormir com tamanha euforia, então decidiu tomar um pouco de ar fresco. Abriu uma fresta na porta e deixou o vento gélido da noite soprar sobre ele.
A chuva caia torrencialmente e acabou encharcando o assoalho de madeira do piso junto com ele. Era uma sensação absurdamente boa, pois David sentia seu corpo quente como brasa e um pouco de água gelada sempre o ajudara a esfriar a cabeça. Os raios dançavam no céu enquanto o vento soprava e fazia sua roupa ondular.
David deixou algumas gotas respingarem em seu rosto e escorrerem pelas bochechas pálidas enquanto tentava relaxar um pouco, esquecendo os pensamentos que acabara de ter. O vento assobiou alto passando pela fresta da porta e, aumentando gradativamente, fazendo as gotas da chuva passarem cada vez mais para dentro de casa. Antes que o garoto pudesse fazer qualquer coisa, alguma coisa entrou em seus olhos, embaçando a visão. Atrapalhando, tentou agarrar a porta, para fecha-la, mas esta balançou e depois foi empurrada pela força da ventania, abrindo-se completamente, fazendo a maçaneta de ferro chocar-se violentamente contra a parede. Alguns segundos depois, uma voz feminina e sonolenta emergiu do andar de cima.
- Quem está ai?
David estremeceu. Não devia estar fora da cama, estava muito tarde e certamente sua mãe brigaria com ele por isso. Graças a isso, pensou seriamente em fechar a porta, desligar a luz e correr para a sua cama. Talvez sua mãe achasse que estava sonhando. Mas não o fez. Refletiu durante alguns segundos e, em vez disso tudo, simplesmente respondeu.
- Sou eu, mãe.
- Pera, estou descendo. - respondeu a voz, um pouco mais sóbrea.
Ouviu, entre o barulho dos trovões que ecoavam lá fora, o estalar da madeira da cama, que premeditava o fato de sua mãe estar se levantando-se da cama e, em seguida, o eco de seus passos lentos em seu caminhar pelo corredor. David, constrangido, decidiu fechar a porta, mas, ao colocar a mão sobre ela, sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha, subindo pelo seu corpo como o toque de ferro frio. Em seguida, ouviu novamente o assobio forte do vento. Mas havia algo estranho dessa vez, ou dessa vez ele teve a capacidade de perceber isso. O garoto se exaltou durante alguns segundos. Em seu íntimo, sentiu algo estranho, algo que nunca havia sentido, como se o assobio do vento lá fora, apesar de extremamente alto, afogasse um outro som, sobrepondo algo minúsculo que estava envolto a sua imensidão poderosa.
Assustado tentou prestar mais atenção, mas ao fazer isso, deu-se conta de que não havia nada de mais. Era apenas o forte vento de tormenta e a sua sede gigantesca por algum acontecimento diferente.
Se você não cresceu isolado, talvez em uma cidade pequena, como David, nunca vai entender como a vida pode ser um grande marasmo, um grande tédio. As vezes, David se pegava pensando em coisas impossíveis de acontecer, sonhando, mesmo que fossem acontecimentos um pouco trágicos, gostava de sonhar com a possibilidade de sua vida sofrer uma reviravolta... o problema é o medo que ele tinha de reviravoltas, medo do desconhecido.
Mesmo assim, mesmo sabendo que se tratava de coisas da sua cabeça, de desejos escondidos em seu interior, abriu a porta e colocou o pé para fora de casa, na pequena esperança de que algo estivesse acontecendo.
A decepção não veio, pois o garoto não estava realmente empolgado com a possibilidade de que tivesse ouvido realmente alguma coisa diferente do vento.
Tudo estava exatamente como deveria estar. Tudo completamente escuro, ou quase, pois os postes de luz pela estrada de terra, onde uma pequena lâmpada de calor, presa a uma corrente de aço, balançava com a força do vento e iluminavam o chão da pradaria. A água caía pesadamente e o vento diminuiu a sua intensidade. O céu estava como antes. Negro, profundo e incólume. O que diabos foi isso, afinal de contas?
- David, o que está fazendo acordado há essa hora? – perguntou a voz. O garoto ficou paralizado, durante alguns segundos, prendendo a respiração, mas logo se deu conta de que não havia o que temer. Então virou-se e esncontrou sua mãe descendo as escadas. - Já passa da meia noite e você acorda cedo! - Bom, ela está calma, não deve ter sido nada mesmo. Coisa da minha cabeça.
Ela se chamava Sarah. Era uma mulher bonita, de vinte e dois anos e corpo bem torneado. Tinha a cabeleira espessa e comprida até o meio das costas, completamente bagunçada, mas seus olhos eram verde-musgo, escuros com um tênue brilho natural. Usava um roupão azul-claro, que cobria seu corpo até a metade de suas coxas fortes.
Era verdade que Sarah não era a mãe verdadeira de David e isso não era segredo para ninguém, mas não era por isso que o garoto não a iria chamar de mãe. Ela cuidou dele desde que ele nasceu e o tratou como se fosse seu filho biológico, talvez até melhor, levando em consideração a pouca idade que os diferenciava. Eles conversavam como se fossem amigos de infância, sobre todos os assuntos que viessem à sua cabeça, eram como amigos, na verdade, apesar de Sarah ser uma mulher um tanto irritadiça.
- Nada, mãe. – respondeu David, um pouco na defensiva, com sua voz hesitante. – só não consigo dormir.
Sarah desceu as escadas e foi até um armário branco preso no á parede, ao lado da geladeira. Sem dizer uma só palavra, puxou uma lata de chocolate em pó e colocou sobre a pia de mármore. Depois, bufou.
- Está preocupado com amanhã? – perguntou ela enquanto abria outro armário e puxava dois copos com a ponta dos dedos e depois os pousava ao lado da lata de chocolate.
David estava inseguro quanto a responder isso á mãe. O dia anterior havia sido bastante animador graças ao fato de David se prontificar a se tornar um treinador. Ele queria se mostrar crescido o bastante para não parecer mais um garoto indefeso. Não podia mais depender dela, levando em consideração o fato de que ela não estaria presente em sua viagem.
- Claro que não. – respondeu ele, após alguns segundos.
Enquanto virava o leite de uma garrafa de vidro dentro dos dois copos, soltou um risinho baixo e derramou um pouco sobre a pia.
- Não precisa me esconder nada, pequenino. – disse ele, virando-se com os dois copos cheios de leite com chocolate. – sente-se ai no sofá.
David sentou- se e ela se sentou ao lado dele. Entregou-lhe um dos copos e bebericou o outro.
- Eu sei que está inseguro quanto a tudo isso, David. – disse ela após beber um pouco do leite. – eu também estaria assustada. Não se preocupe tanto.
David pareceu desconcertado.
- Ontem, Derek já tem um Pokémon. Um Heracross lindo! – disse ele finalmente. Deu um gole em seu leite e continuou. – amanhã, eu receberei o meu primeiro e não faço a mínima idéia de como treiná-lo.
Sarah fingiu uma divertida expressão de dó. Sempre fora uma mãe carinhosa e bondosa para o filho, deu-lhe de tudo e muito mais.
- Você tem o Dentuço. Não deve ser muito diferente. – disse ela. Dentuço era o Ratatta macho e mal humorado que havia comprado. O Pokémon não era nada mais do que um pequeno roedor de olhos avermelhados, pelos eriçados de um tom arroxeado e dentes proeminentes, grandes demais para sua boca. Dentuço, mesmo sendo um pouco maior do que o pé de David, sempre foi um animal violento e ligeiramente selvagem mordendo todas as visitas que Sarah chamava para sua casa. Era uma criaturinha repugnante e o garoto não sentia qualquer afeto por ele.
- Ele é seu e eu nunca me dei bem com aquele bicho. – guinchou David, impaciente.
A mulher terminou de beber o leite e bocejou.
- Não muda o fato de ser a mesma coisa. - retrucou ela, sorrindo.
David terminou o seu copo de leite, com dois grandes goles e pousou o copo sobre o braço do sofá.
- O Dentuço não faz coisa alguma, só sabe cavar e roer as minhas coisas. O meu pokémon vai ser muito mais poderoso, tenho certeza disso. - irrompeu David, tentando parecer confiante. - e quando você me ver novamente, ele vai estar em sua ultima forma e vai poder até me carregar nas costas por ai.
Sarah bebericou o leite, sujando a parte superior do lábio e limpou com a língua. As vezes, David se esquecia do fato de ela ser uma mãe relativamente nova, mas o sorriso que ela deu em seguida, lembrou-lhe o de uma criança brincando.
- Ah, então já sabe qual pokémon vai escolher?
- Sim. – disse David. – mas não vou te contar. É uma surpresa!
O som de uma descarga elétrica irrompeu do lado de fora, seguida pelo clarão de luz pálida que invadiu a casa pela janela de vidro. O barulho foi muito alto, assustando tanto o garoto quanto a sua mãe, que não tiveram nem tempo para fazer coisa alguma antes do trovão chegar. O som do trovão foi mais alto ainda, estremecendo os vidros da casa, como um grande estrondo. Se alguém ainda estava dormindo até aquele momento, esse alguém acordou. Nos segundos seguintes, a luz da lamparina começou a piscar fracamente, tentando manter sua intensidade, mas sua luz não tardou a desaparecer por completo.
Um calafrio percorreu a espinha de David novamente e eriçou os pelos na sua nuca. A luz de outro raio clareou novamente a sala e o trovão rosnou do lado de fora, como um tauros pronto para a investida.
Então, exatamente como antes, David o mesmo som, quase inaudível, ecoando por todos os cantos do aposento. Mas dessa vez, o som estava mais forte e, mesmo com as descargas elétricas cruzando o céu, os trovões estremecendo a casa e o vento soprando, o som pareceu encontrar uma brecha entre tais barulhos. O garoto fechou os olhos, tentando prestar atenção, tentando distinguir o que era.
- David, aconteceu alguma coisa?! - perguntou Sarah, assustada, mas a sua voz se perdeu em meio a tantos sons mais poderosos.
David então conseguiu ouvir claramente, apesar da tempestade e de toda a confusão. Parecia um sussurro, um sussurro fraco e fatigado, constante, como muitas vozes falando rapidamente. Folhas dançavam com o vento lá fora chocavam-se com o vidro, grudando em sua superficie e lá permanecendo. O som não era alto, mas era claro e sombrio, como uma reza apressada e triste.
Meu deus, o que está acontecendo? Perguntou-se David pondo-se de pé subitamente e encarando a mãe.
A mulher parecia alheia a qualquer coisa que estivesse acontecendo, encarando a tempestade lá fora pela janela, agora escancarada.
O sussurro continuou, falando coisas em qualquer idioma que David desconhecia. Era estranhamente assombroso para o garoto, que logo percebeu que não se tratava de sua imaginação. Algo estava acontecendo, isso era fato. Mas a mãe não está ouvindo?
O garoto pensou em correr para a janela, olhar lá para fora, mas estava assustado demais para fazer algo, fora ficar ali, parado, ouvindo aquele estranho lamento. Se levantar foi muito além do que sua coragem permitia, pois sentia as pernas tremerem, como se sentisse frio.
Aos poucos, finalmente sentia o sussurro diminuindo gradativamente e seu som foi ficando cada vez mais baixo, até desaparecerem em meio ao uivo do vento e o farfalhas dar arvores lá fora.
David escorou-se na parede, com os olhos vidrados e o coração pulsando como nunca. Temeu que ele pudesse saltar de sua boca.
- M-mãe! O que foi isso? – perguntou, tropeçando nas próprias palavras. - Você não ouviu?
Sarah estava assustada, mas não tanto quanto David calculou que estaria, levando em consideração o que havia acabado de acontecer.
- Foram raios, trovões e o vento, pequenino. Não fique tão assustado. - disse ela, com a sua voz calma e pacata de sempre. - As luzes também piscaram um pouco, mas não foi nada além disso.
É, ela não ouviu, mas não é possível que seja loucura minha! Era um som tão real, tão... Então, David percebeu que parecia estar agindo feito um maluco completo, então resolveu disfarçar um pouco.
- É, verdade. - disse, tentando fazer uma voz de desdém. - Só fiquei um pouco preocupado, sabe? A luz piscando e tudo o mais.
Sarah subiu para o seu quarto após alguns minutos e deixou David na sala sozinho. Eles haviam parado de conversar depois daquele estranho acontecimento, pois David estava muito perplexo, e sua mãe, de alguma forma, parecia perturbada com isso.
Quando a tempestade diminuiu um pouco sua intensidade, o garoto relaxou, apesar de ainda estar achando tudo muito esquisito. Ainda sentia um pequeno medo, em seu íntimo, de voltar a ouvir aquela estranha e perturbadora voz novamente, então, um pouco apreensivo, resolveu fechar a cortina da janela, só por "precaução".
Em seguida, acomodou-se no sofá bege, deitando-se por toda sua extensão e colocou os pés sobre o apoio para o braço. O que foi aquilo? Aquelas vozes murmurando... talvez um pokémon raro tenha se perdido no meio dessa tempestade, talvez tenha sido carregado pelo vento, vindo de muito longe... algum lugar do Leste, aposto. Algum Pokémon esquisito seria a única explicação plausível para o que aconteceu aqui hoje. Talvez um pássaro lendário ou coisa do tipo, quem sabe?
David estava assustado, de fato, mas logo começou a perder o medo e imaginar diversas possibilidades para o estranho sussurro que ouvira. Imaginar as mais diversas teorias que a cabeça de um garoto de doze anos tem a capacidade. Pensou sobre os cientistas de Elgwir, que viviam fazendo experimentos com pokémons raros, eles sempre estavam metidos em coisas do tipo. Pensou sobre todas as lendas que ouviu, desde muito criança, sobre pássaros gigantescos que cuidavam dos céus, sobre criaturas colossais que viviam nas mais profundas águas do oceano... pensou nos fantasmas, os pokémons que mais o aterrorizavam e ele sabia exatamente o motivo pra isso.
Quando se deu conta das coisas improváveis em que estava pensando, sentiu um pouco de vergonha de si mesmo e resolveu assistir televisão para se distrair. Levantou-se, desligou a lamparina, pegou o controle e ligou a televisão.
Vários canais falavam sobre a tempestade que soprava por todo o Oeste da região. Alguns apresentadores chegaram a mencionar furacões se formando na costa e ondas com mais de oito metros de altura chocando-se contra o litoral, onde pokémons estranhos apareciam encalhados na areia, empurrados pelas correntes marítimas, pegos desprevinidos e perdendo-se de seus bandos. Outros apresentadores falavam sobre velhos carvalhos sendo arrancados do chão com raiz e tudo, sendo arremessados a metros de distancia ou simplesmente tombando de lado, sobre casas e edifícios. Em outro canal, um apresentador moreno corria até um estábulo, enquanto o companheiro filmava ao longe, meia dúzia de raios descendo do céu e chocando-se contra o teto da construção de madeira, espalhando luz em meio à escuridão da noite. Após percorrer todos os canais meia centena de vezes, parou finalmente em um que lhe chamou a atenção. Um homem com uma comprida barba ruiva falava sobre Tailows, Pidgeys, Sperows e outras aves, que estavam migrando para longe alguns dias antes, como se tivessem previsto qualquer tipo de acontecimento natural. Outros Pokémons que não podiam voar estavam inquietos, se escondendo em tocas e outros refúgios, cavando buracos profundos na terra em busca de um abrigo seguro.
- Os pokémons estão preocupados, é fácil notar isso. Deviamos prestar mais atenção nas coisas que eles fazem, isso teria ajudado muito. - dizia ele, enquanto sua barba dançava com o vento, iluminada pela luz da câmera, dando-lhe o aspecto de fogo trepidante em vez de uma simples barba ruiva. - Eles parecem premeditar os acontecimentos geológicos e procuram meios de se proteger disso. No final das contas, eles e o planeta parecem ser uma coisa só.
David se distraiu com isso, esqueceu-se do tempo ruim e por fim, caiu em um sono profundo.
A única coisa que se lembrou de seu sonho mais tarde, foi de um vasto azul cristalino.
David acordou repentinamente, sentando-se no sofá instintivamente, sem fôlego, com o coração disparado. Estava encharcado de suor frio e suas roupas estavam úmidas, coladas contra o seu corpo. A televisão ainda estava ligada, sendo o único ponto de luz naquela sala, onde projetava a imagem de um Donphan enfrentando um Nidoqueen em um campo de batalha.
David levantou-se do sofá e desligou a televisão, banhando o aposento em um breu completo. Foi até a janela e ficou olhando a tempestade através do vidro fechado. Era algo selvagem como jamais havia visto. Tudo que não estava preso ao chão, voava para longe, perdendo-se de vista. A maior parte dos postes de luz lá fora haviam desaparecido ou estavam jogados em algum canto, a metros de distância de onde deveriam estar. Os raios cruzavam o céu a todo o momento, como serpentes de luz dançando entre a escuridão.
Permaneceu ali, ao lado da janela, até começar a ver os primeiros raios de sol emergindo entre as nuvens tempestuosas, clareando o horizonte com uma luz pálida, que cortava a pradaria e mostrava o que restou do mundo lá fora. As poucas casas que cercavam a estrada estavam praticamente intactas, quando se diz sobre a sua estrutura. Já, o lado de fora das casas, parecia que haviam sido atropeladas por uma manada de pokémons raivosos. Os jardins estavam devastados, com terra revirada para todos os lados, pequenas árvores e arbustos jogados, arrancados do chão, com as raízes expostas. As cercas de madeira que contornavam as propriedades da casa estavam despedaçadas e as porteiras estavam caídas, cheias de lascas. É bem verdade que as casas seguiam um pequeno padrão por ali, eram todas iguais, fora sua cor e, algumas vezes, o tamanho, por isso, os estragos foram bastante proporcionais.
Na casa dos Reed, Derek saiu pela porta com o seu Heracross. Derek era um garoto alto, de ombros largos e pele clara. Seu cabelo era louro como areia, caindo-lhe pelos lados do rosto e seus olhos eram azulados como o céu em um dia de sol. Era verdade que parecia pouco mais forte do que David, o que não queria dizer necessáriamente que ele era musculoso. Ser mais forte do que David era algo bastante comum. Ao seu lado, o Heracross erguia-se imponente, sobre as patas traseiras, empinando o rosto e erguendo o grande chifre que crescia no meio de seu rosto. Seu corpo refletia a luz do sol, e em sua carapaça, um brilho azul-escuro, intenso e límpido, refulgiava como se fosse feito de metal. Seus braços rígidos terminavam em grandes garras, de aparência poderosa, que pareciam prontas para esmagar qualquer coisa em seu caminho. Já os seus olhos, eram amarelos e brilhantes, olhos orgulhosos como os de um rei. Atrás, veio Heytor, o pai de Derek. Era calvo e tinha uma barba cheia cobrindo-lhe parte do rosto. Logo, Heracross e Derek agarraram o pequeno portão de madeira, caído que, por alguma sorte divina, ainda estava inteiro.
Eles o ergueram e encaixaram onde deveria estar, junto à cerca, onde Heytor começou a martelar um prego junto a dobradiça.
Cansado de assistir a cena, David passou a se preocupar com o dia que chegou e, por isso não tentou dormir de novo. Sentiu a tempestade como algo belo, no final das contas. Achou irônico o fato de ir pegar o seu primeiro pokémon no dia em que algo assim havia acontecido. Em sua cabeça imatura, lembrou-se das antigas histórias que lia, sobre presságios e profecias.
Após alguns minutos, as gotas pararam definitivamente de cair do céu, cujo estava pálido, cinzento e de aparência melancólica. David bocejou e viu o ar quente saindo de sua boca em uma forma semelhante à fumaça. Estava congelando de frio, mas seus membros estavam rígidos e doloridos da noite turbulenta que havia tido. Soltou um gemido de dor quando se espreguiçou e sentiu os ossos estalarem.
Foi até o banheiro e fez suas necessidades. Enquanto escovava os dentes, olhou-se no espelho. Estou um caco. O branco de seus olhos, agora fundos graças a noite mal dormida, possuía ramificações avermelhadas por toda a extensão. Estava mais pálido do que de normalmente e suas costumeiras olheiras, estavam mais profundas e negras.
Enquanto cuspia dentro da pia a saliva da sua boca misturada com a pasta de dente, ouviu o despertador tocando no seu quarto. Seis horas da manhã. Correu até seu quarto, ainda com a escova na boca e desligou-o, antes que acordasse sua mãe. Voltou ao banheiro e terminou de escovar. Tentou pentear o cabelo, mas foi trabalho em vão, pois seu estado no momento era tão desarrumado e embaraçado que não se deu ao trabalho de lutar por muito tempo com ele, por isso, optou por deixa-lo rebelde.
Foi até seu quarto e abriu o guarda-roupas. Não possuia muitas roupas, isso era verdade, mas mesmo assim, sentiu-se estranhamente preocupado com o que usaria hoje. Era um grande dia para ele e, por isso, deveria estar, no mínimo, apresentável. Optou por usar uma calça jeans escura e sua jaqueta com tons de vermelho e preto por cima de uma camisa branca.
Quando se levantou, olhou o quarto. Já sentia uma fraca pontada de nostalgia crescendo em algum lugar. Havia crescido naquele cubículo e, apesar de tudo, sentiria saudades, apesar de não ir embora naquele exato dia, só no dia seguinte, achou que já estava com um buraco no peito. Quando desejou se tornar um treinador de Pokémon, tinha o feito exatamente por isso. Estava cansado do lugar em que vivia. A pacata vila Lodarin. Era um lugar calmo e simples, como as típicas vilas do interior geralmente eram. As coisas não aconteciam por lá e as que aconteciam em outros lugares, demoravam anos para serem vistas por quem morava ali, se um dia chegarem a ser. Olhando para o horizonte, via-se que o lugar se situava em um vale, entre montanhas e colinas verdes, onde a vida era abundante. Abundante, mas calma. Calma demais para David. Pelo menos agora.
Virou-se para a janela e encarou as montanhas que, mesmo daquela distância, pareciam torres gigantescas como pico coberto de um branco incólume, tão distantes quanto algo tinha o direito de ser.
Deu-se por si, refletindo sobre a tempestade da noite passada. Aquilo não havia sido uma tempestade comum, pois além do vento, da chuva e dos trovões, David ouviu outro som. Aquele estranho sussurro sobre todos os barulhos selvagens de uma tormenta.
Essa tempestade foi algo realmente assustador e acho que alguém sensato esperaria mais alguns dias para sair de casa, mas não vai me parar. Não agora que a minha jornada vai finalmente começar.
Recordou-se de como ela, a voz, ecoava em sua mente cada vez que irrompia sobre os outros sons. De como a voz parecia chamá-lo de uma forma medonha e em um tom alarmante. Não parecia com qualquer Pokémon que já tivesse visto.
Está na hora de ir...
Colocou as alças da mochila sobre os ombros e saiu do quarto. Atravessou o corredor, parou frente a porta do quarto da mãe e bateu levemente contra a madeira.
- Mãe? – perguntou em voz baixa, esperando não assustá-la. – mãe. Estou indo.
Ouviu a cama no quarto range. Ela deve ter acordado. Não demorou muito para Sarah abrir a porta, com seu habitual rosto sonolento.
- Bom dia, filho! – disse ela, observando o garoto com os olhos ainda semicerrados e vermelhos, depois bocejou pesadamente e escondeu a boca com as costas da mão. Será que ela dormiu depois de subir?
Sarah parecia um tanto preocupada, uma vez que David nunca saiu da cidade. Mas seu rosto continuava como sempre, singelo.
- Está tudo bem, mãe. Hoje mesmo eu já estou de volta. Só vou até Faorlin pegar o meu pokémon. - disse David, tentando parecer alheio ao rosto de preocupação de sua mãe. - vou chegar aqui e você vai conhecer um pokémon de verdade, o Dentuço vai sentir cíumes. - completou, dando um risinho nervoso.
Ela colocou o dedo no queixo e fitou o garoto dos pés à cabeça, fingindo um olhar de reprovação.
- Você não vai mesmo usar a blusa que eu te dei, né? - disse ela, abrindo um sorriso alegre e bricalhão.
- Muito feia, onde já se viu? - respondeu David, devolvendo o sorriso. - agora eu tenho que ir, até de noite estou de volta, tá?
Sarah bufou.
- Pegue o dinheiro na gaveta e compre alguma coisa pra comer e vê se não volta tarde!
- Tá, estou indo, até mais tarde! - disse, inclinando-se para a frente e dando um beijo no rosto de Sarah.
- Boa sorte, traga um pokémon lindo pra sua mãe! - disse ela, enquanto David virava-se de costas e corria pelo corredor, mais animado do que jamais se sentiu em toda a sua vida. - Não se esquece de me trazer um chocolate!
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