Anoitecer.
O tom carmesim do por do sol invadia o interior da Grande Torre pelos vitrais. Os vitrais, por sua vez, materializavam desenhos bem detalhados para dentro do local, preenchendo o piso e as paredes com cenas de luta e glória. Reis imponentes e orgulhosos erguiam-se sobre seus tronos enquanto bravos cavaleiros com suas armaduras prateadas lutavam em batalhas gloriosas. Dragões e outras bestas derramavam seu sangue sob a forma do crepúsculo por todo o salão, dando o sabor de sua morte as sombras que ainda se escondiam lá dentro.
O salão era amplo e espaçoso, com estantes de madeira abarrotadas de livros se estendendo até onde a visão pode enxergar. Os livros eram todos iguais. Grandes, grossos e antigos, com capa de couro avermelhado e o título em letras douradas.
Em um canto, porém, um homem calvo, de idade muito avançada, estava imóvel observando o jogo de luzes formado pelos vitrais. O ancião ocultava sua corcunda avantajada usando um sobretudo marrom-escuro com uma corda amarrada em torno da cintura. Apesar das mangas compridas de sua vestimenta, as formas desenhadas a ferro e fogo em sua mão eram nítidas. Marcas cravadas na pele de todos os membros da ordem.
O ancião virou-se e encarou o crepúsculo através do vitral mais próximo. A forte luz que iluminava o horizonte dançava pelo cômodo, fazendo os olhos escuros do velho reluzirem friamente.
- Você também leu o livro, Mestre Heilwich? – perguntou uma voz subitamente, vinda de perto das estantes. – Não é possível. Algo deve estar errado.
- Joel, as palavras escritas nesta torre não mentem. – respondeu Mestre Heilwich calmamente. Sua voz era suave e impassível, como se o sutil toque do tempo não tivesse lhe afetado.
Então, uma sombra que jazia próxima à estante, afastada da luz do sol, começou a crescer e tornar-se cada vez mais negra e sólida. Uma extremidade tocou a parede começou a se esgueirar por ela sem qualquer forma definida. Já a outra, começou a rastejar e se contorcer pelo chão, até parar em um determinado ponto, para não alcançar o fulgor do por do sol. Vagarosamente, em meio à penumbra, a silhueta de uma pessoa foi se formando, materializando-se do borrão negro. Como se emergisse da água, um homem saiu da escuridão e postou-se ajoelhado às costas do ancião.
- Este servo reconhece, mas concorde que é difícil acreditar. – murmurou o homem.
Era um sujeito alto e esguio, que se trajava totalmente de preto. Usava uma camisa de algodão de onde surgiam braços magros e pálidos, abarrotados de cicatrizes. Já os olhos eram esverdeados e cansados, com olheiras adjacentes entre a abertura de um turbante.
- Eu já tinha visto tudo isso. – Disse o ancião ainda de costas para o homem. – Joel. É impossível sabermos que futuro os ventos trarão. Os deuses escondem tudo de nós, simples peças. Mas escute o que estou lhe dizendo, é em dias assim que as lendas começam a ser forjadas.
Joel levantou-se e postou-se em posição de sentido.
- Eu li no Livro Vermelho que os dias serão mais escuros, Mestre Heilwich.
- Mais escuros e até as noites mais sombrias. – disse o velho ancião, depois apontou pela janela a uma massa escura sob o crepúsculo. – Vê lá no céu? As nuvens negras se aproximando?
O homem de negro caminhou até a borda da janela e olhou para fora colocando as mãos sobre o parapeito.
- É o início da canção, Mestre Heilwich? – perguntou incerto.
O ancião fechou os olhos e sussurrou.
- O início ou o final... Esses dias serão lembrados nas rimas dos menestréis, Joel. Dias negros.
Joel ajoelhou-se novamente e levantou os olhos para Mestre Heilwich, com o punho sobre o peito.
- Mestre. Diga-me, eu devo ir? – perguntou.
- Vá. Tem tudo o que precisa? – perguntou o ancião com sua voz rouca e serena. Depois levou a mão aberta à boca e tossiu algumas vezes. Encarou a palma, com olhos tristes e deixou a mão cair, como se estivesse solta. Joel sabia o que aquilo queria dizer. O tempo de Mestre Heilwich estava acabando.
- Tenho! – respondeu Joel algum tempo depois, percebendo que o ancião sabia o que pensava. – Edwin cuidou disso pra mim há algum tempo.
Mestre Heilwich dobrou os joelhos e abaixou-se, ficando ombro a ombro com Joel. Colocou a mão sobre o ombro do homem de negro e sorriu.
- Excelente. Avisarei Dorian. Agora você precisa ir. Yenneiros o espera.
Joel estava sentado sobre uma cadeira de madeira no centésimo andar da torre. O lugar era sombrio e mal iluminado, as chamas de dois archotes tremeluziam nas paredes de rocha. Por uma janela, o par de olhos verdes observava a massa escura se aproximando cada vez mais. Já era noite fechada. As três luas cintilavam pálidas entre as nuvens. Nuvens espessas e grandes, em um primeiro olhar, era fácil perceber que havia algo de errado nelas. Algo diferente e peculiar. Eram negras, mais negras que a própria noite e nem a luz das luas ou das estrelas pareciam capazes de penetrar.
Mestre Heilwich avisou Joel. O Livro Vermelho avisou Joel. A sensatez avisou Joel. Mas ele não ouviu.
Levantou-se da cadeira e caminhou até a janela aberta. Olhou para baixo e depois pulou. Pulou com uma agilidade felina, agarrando-se ao parapeito com as mãos e impulsionando as pernas para fora da abertura na parede de rocha. Quando deu por si, estava caindo em uma velocidade impressionante de uma altura incalculável. O gramado do chão se aproximava cada vez mais. Colocou as mãos dentro do bolso e tirou duas adagas de aço. As lâminas refulgiram a luz tênue das luas e brilharam como prata viva. Enquanto caia, Joel abriu os braços e pressionou as adagas contra a parede que corria as suas costas e fez sua folha penetrar na rocha e, aos poucos diminuir a velocidade da descida. Fagulhas surgiram e piscavam enquanto Joel descia. Quando chegou perto do solo já estava consideravelmente lento, então puxou as adagas e caiu graciosamente sobre a grama.
Lá fora, um lago de água cristalina e calma circundava a extensa torre, que cobria a distancia que teria uma pequena cidade. Era alta e majestosa, crescendo sobre o lago em direção aos céus e se perdendo em meio à escuridão e as nuvens. Era feita de rocha obsidiana de um profundo tom negro incólume, por isso foi muitas vezes, através dos séculos foi chamada de Torre Sombria, quando seu nome, traduzido na língua dos homens ao pé da letra, seria mais parecido com Torre Do Conhecimento.
Joel inclinou a cabeça para trás e observou as três luas. Respirou fundo e fechou os olhos sentindo o cheiro da grama e o vento chicoteando em seu rosto. Era uma sensação boa. Será que sentirei isso novamente? Pensou em seu íntimo. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto desaparecendo no emaranhado de panos de seu turbante. Irmã...
Em volta haviam algumas edificações feitas de madeira que serviam para abrigar os servos, aprendizes e guardas que não tinham permissão de entrar na Torre. Por isso, foi fácil para Joel se esconder dos soldados que patrulhavam a redondeza. Ele caminhou pelos becos entre as casas, sorrateiro como uma raposa. A noite estava clara e era fácil ver os homens caminhando e se esconder deles. Portavam armaduras de aço branco e capas com o escudo de suas casas. Sempre possuíam uma espada presa ao cinto e alguns, além das espadas, traziam nas mãos lanças e alabardas.
Após deixar alguns guardas para trás, subiu em uma casa. Usando alguns barris como apoio, agarrou a borda do telhado e impulsionou o corpo para trás empurrando a parede a sua frente com os pés. Seu corpo balançou e foi arremessado para cima da casa de cabeça para baixo, sustentando o corpo na vertical com os braços estranhamente magros. Girando, abaixou-se e observou a sua volta. As construções de madeira eram irregulares. Algumas mais altas que as outras, mas eram próximas. Próximas o suficiente para um homem habilidoso conseguir transitar por toda a pequena vila apenas pelos telhados. Exatamente como pretendia.
Eu preciso tomar cuidado. Mestre Heilwich nunca falou abertamente sobre como a segurança da cidade era dividida. Pensou.
Caminhou abaixado pelo telhado e pulou para a casa da frente. A madeira não fez ruído algum com o impacto. O homem de negro era habilidoso e onde quer que fosse, era quieto como os fantasmas da madrugada. Pulou novamente para a casa da frente e parou. Olhou em volta. Está claro. As três luas brilham muito nas noites de verão.
Esperou até as nuvens cobrirem duas das três luas, ocultando seu brilho tênue e preenchendo o campo com uma leve penumbra. Rapidamente Joel voltou a pular pelos telhados. Logo percebeu que o estábulo estava bem abaixo dele. Era uma edificação baixa e comprida, feita de madeira velha e podia abrigar cerca de dez montarias. Edwin, o cavalariço, estava sentado sobre uma caixa fumando um cachimbo. Era um homem alto, com braços fortes e pele morena. Joel o conhecia há muito tempo, desde antes de entrar para a guilda das lâminas negras. Quando foi trazido para treinar na Grande Torre, veio em uma marcha grande, de cerca de cinqüenta pessoas, e Edwin foi o seu único amigo no caminho.
- Edwin! – tentou dizer em voz alta, apesar de ter saído mais como um sussurro. – Edwin, olha aqui!
O cavalariço olhou para cima, ainda com o cachimbo na boca, e viu Joel sobre a casa do outro lado da rua. Espantado, levantou-se do caixote onde estava sentado e olhou para os dois lados. Depois, quando viu que não havia ninguém, atravessou a rua e disse.
- Joel! Pensei que não ia vir nunca! Desce logo daí.
O homem de negro pulou de cima da casa e caiu no chão de terra seca, sem levantar um grão de poeira ou fazer qualquer barulho.
- Vamos entrando, temos muito que conversar. – disse Edwin abraçando o amigo e empurrando-o para dentro do estábulo.
Joel entrou e abriu o buraco do turbante, revelando um rosto anguloso e bem delineado.
O lugar era quente e aconchegante. As janelas estavam abertas deixando entrar a brisa da madrugada. Vários cavalos, alguns adultos e outros ligeiramente jovens, estavam lá dentro. Quase todos dormiam em um sono profundo, debruçados sobre as patas. Quase todos, pois um grande corcel bebia a água de um balde de ferro. Era um animal de raça e possuía um porte magnífico. Sua pelagem e crina eram negras como as roupas de Joel, mas possuía uma mancha branca com o formato de uma estrela de quatro pontas entre os olhos, no topo da cabeça.
Joel se aproximou do cavalo e passou a mão pela sua crina.
Você é lindo, amiguinho. O cavalo bufou.
- Parece um bom animal. – disse analisando a musculatura do corcel. – É forte como um touro e deve ter sido bem cuidado.
Edwin colocou o cachimbo sobre uma mesinha de madeira e estufou o peito, orgulhoso.
- Eu mesmo o escovo e levo para passear todos os dias. – disse Edwin. – A propósito, ensinei os comandos que me pediu.
- Ele atende bem? – perguntou Joel, agora abrindo os lábios do animal e examinando seus dentes.
- Estrela Da Noite, Lectus! – disse Edwin e imediatamente o corcel negro deu um coice para trás, batendo com força na parede de madeira.
Joel parecia encantado com o cavalo. Seus olhos verde-musgo brilhavam como não brilhavam a muito tempo.
- Estrela Da Noite? – riu Joel. – Deixe-me adivinhar... Pela marca na cabeça?
Gostei do nome, combina com um assassino.
- Exatamente. – disse Edwin. Depois se exaltou. – Ah, havia esquecido, Joel. Venha comigo. – e atravessou o estábulo caminhando rápido, até desaparecer por uma porta nos fundos do aposento. Joel foi atrás.
A porta dava na parte de trás do estábulo, onde um campo aberto se estendia com grama verde e bem cortada. Para limitar o espaço, cercas de madeira estavam presas ao chão, formando um circulo. Edwin corria até próximo da cerca, em um lugar onde havia terra revirada.
- Eu a escondi aqui. – garantiu o cavalariço com um estranho sorriso no rosto. Desde que Joel o conhecera, havia perdido dois dentes, pelo que foi possível ver.
Estranho ele não estar cuspindo em mim enquanto fala. Bom, bem feito para ele, eu sempre o avisei pra cuidar da higiene. Todo homem deve conservar seus dentes.
- Se não estiver, arranco um dedo seu. – disse Joel respondendo ao sorriso. Melhor não dizer nada sobre os dentes. Agora ele deve ter aprendido a cuidar deles.
Edwin enfiou as mãos na terra fofa e começou a revirá-la. Cavou por alguns segundos com seus dedos grossos de cavalariço, até encontrar um embrulho. Puxou-o da terra com mais força do que devia ter calculado. Quando o embrulho emergiu da terra, Edwin desequilibrou e quase caiu pra trás.
- Aqui. Sua arma. – disse estendendo os braços em direção a Joel. O embrulho era feito de couro branco de vaca, comprido, com cerca de um metro, mas fino e leve como um galho de arvore.
Joel apanhou-o e desfez as amarras em torno do embrulho. Dentro dele, uma bainha preta cintilou sob o luar. Era comprida e fina, de um negro virgem que brilhava, refletindo o rosto do homem de negro. Dragões dourados, ricamente detalhados e bem torneados, serpenteavam pela bainha dando-lhe um aspecto elegante. O cabo da espada era coberto por couro marrom-escuro e a maçã na ponta possuía uma pequena pedra vermelha como sangue. Passou o dedo indicador pelo fio da lâmina, que o cortou instantaneamente. Um filete de sangue escorreu pelo aço. Afiada como Navalha. Ele desembainhou a arma habilmente e a lâmina de aço cortou o ar. E ainda tem um equilíbrio perfeito. Além de ser leve como uma espada de madeira. Manejou-a girando o pulso com destreza e atacou um inimigo invisível. A folha parece ser feita de prata ou algum outro metal raro.
- Foi difícil arrumar essa ai. – Disse Edwin, depois estremeceu. - Um sujeito esquisito do mercado negro me vendeu. Não conseguia ver seu rosto, pois usava um manto roxo com capuz. Ele me disse que era uma espada vinda de Eros, no norte extremo. Disse também que era uma arma de heróis, forjada em chamas negras e que a lâmina bebia sangue fresco.
Joel riu.
- É só uma espada, Edwin.
O cavalariço observou a lâmina da espada por algum tempo. Seus olhos cor de mel pareciam assustados.
- Ela parece emitir algo sinistro. – resmungou. – coloque-a na bainha, por favor.
Joel deu alguns passos para perto de Edwin com a espada na mão.
- Você tem medinho, Edwin? Cadê aquele menino corajoso que eu conheci? – perguntou Joel com um sorriso malicioso no rosto.
- Guarda isso. – disse ele com a voz irritada. Quando Joel embainhou a espada, continuou. – Que nome vai dar pra ela? Tem que ser um nome digno de uma arma tão incrível.
Joel pareceu desconfortável com a idéia. Olhou para a bainha nas mãos com um ar confuso.
- Nome? – perguntou com um ar aborrecido. – Não sou bom com essas coisas Edwin. Por que não me ajuda?
Os olhos de Edwin brilharam com a idéia.
- Ela é poderosa e parece ocultar alguns mistérios sobre o passado e o futuro... Chame-a de Destino.
Joel pagou a Edwin tudo que lhe devia por Estrela Da Noite e Destino e deu-lhe mais algum dinheiro pelos serviços. Colocou uma mochila sobre as coisas e, depois de agradecer e se despedir, esporeou o corcel negro e sumiu no horizonte negro.
- Boa sorte, Joel. – murmurou Edwin observando o amigo desaparecer na noite. – encontre Einry.
Joel cavalgou a noite inteira sob a luz das três luas. As pradarias eram vastas e, ao contemplar o horizonte, pareciam infinitas. Estrela da noite era veloz como o vento da madrugada e ganhava terreno mais rápido que qualquer outro cavalo que ele já tinha visto. Joel decidiu por evitar as estradas e seguir sua jornada pelo campo aberto. Heilwich disse para que nunca fosse visto e não devia confiar em ninguém, por isso tinha receio de que algum espião do rei o encontrasse ou desse de cara com algum pelotão de seus soldados. Naquela campina era fácil para o homem de negro ver o que havia por perto, mas por suas roupas e seu cavalo serem escuros, não estava muito preocupado com o fato de ser visto ali. Apesar das três luas brilharem firmemente, ele estava camuflado na noite.
Com o passar das horas, gramado aos poucos começou a deixar espaço para uma rala vegetação rasteira. Arbustos e pequenas arvores cresciam no caminho e logo Joel deu de cara com um fino riacho escorrendo entre o campo. Acho melhor eu acampar aqui. Este é o Rio Queimado, então estou chegando perto de Yenneiros. Devem ter alguns homens nas redondezas. Preciso encontrar Dorian logo. Mestre Heilwich vai arrancar minha pele se eu me demorar. Deixou Estrela Da Noite beber um pouco de água, encheu os odres até quase transbordarem e voltou a cavalgar.
O sol amanhecia no horizonte quando viu, ao longe, um homem parado. Ele estava muito distante para se distinguir quem era. Seja camponês, seja soldado. Mas já havia sido visto, não adiantava fugir ou fazer qualquer outra coisa. Preciso parecer um viajante qualquer. Pensou. Tirou o turbante e a camisa e colocou-os dentro da mochila. Depois se vestiu com uma camisa esverdeada de algodão e uma capa de viagem azul-escura. Ele não deve ter visto como eu estava vestido. Pelo menos eu não vi como ele estava... Em todo o caso, continuar a cavalgar pelo campo seria suspeito.
Avançou a trote pelo campo, como um viajante despreocupado. Atravessou a pradaria calmamente até ver, ao longe, uma grande cidade. Da distancia que Joel estava só era possível ver uma muralha alta, seus muros onde as paredes se encontravam e algumas edificações que se erguendo do interior.
Após alguns minutos, chegou próximo aos muros. Tratava-se de Yenneiros, a cidade que tanto procurara. Na entrada da cidade, três estradas se encontravam e tornavam-se uma só e seguindo em direção a uma grande fenda na parede com um portão de madeira grossa levantado. Fora da cidade o movimento era constante. Vários viajantes iam e vinham do portão aberto e desfilavam com seus cavalos, carroças ou a pé. Mercadores haviam estacionado seus carrinhos ao longo das estradas e ofereciam bugigangas aos viajantes cansados que chegavam de carroças e cavalos. A maioria dos mercadores pareciam ser pessoas simples da cidade ou camponeses, alguns poucos tinham a pele morena e olhos levemente puxados, alguns usavam turbantes escondendo o rosto, alguns se escondiam sobre mantos. Mas todos eles tinham algo em comum. Estavam loucos para vender suas mercadorias. Seguravam instrumentos musicais, pedras, livros, armas e ferramenta enferrujados, frascos de vidro preenchidos com líquidos de cores variadas. Quando um jovem a cavalo passou entre dois comerciantes, ambos começaram a falar alto e rapidamente, tentando abafar a voz do concorrente. Entre o emaranhado de vozes, Joel conseguiu captar. Um dizia “Jovem, confira comigo os melhores perfumes da cidade! Garanto que nunca mais vai precisar gastar seu dinheiro suado em prostitutas. As mulheres vão voar em você como lobas famintas!” Já o outro tentava falar ainda mais alto “Compre esta gaita, senhor. Conquiste a garota de seus sonhos tocando musicas de amor para ela! Tenho também um livro de poesias e musicas. Garanto que ela iria adorar.” Vocês é que parecem lobos famintos em cima de um cordeiro.
Joel seguiu seu caminho pela estrada até se embrenhar aglomeração de mercadores. Um sujeito se aproximou e puxou o pano de sua calça negra. Era um homem baixo, de olhos puxados e levemente delineados com carvão. Usava um turbante azul escuro e um chapéu exuberante, com listras brancas e outras lilases. Na ponta, havia uma pena amarela erguida verticalmente, balançando com o vento. Trajava um Cáftan verde-esmeralda todo trabalhando em finas linhas douradas com folhas de outono desenhadas nas pontas.
- O homem que veste negro parece perigoso como uma cobra. – disse ele com um sotaque agudo. - Eu tenho presas para você, homem-cobra.
Joel olhou para o homem com o rosto torneado de desprezo.
- Solte-me, homem do deserto. – disse puxando a perna com força para frente fazendo com que o mercador largasse sua calça. – Toque em mim novamente e vai sentir o meu veneno.
Os olhos delineados de negro do sujeito brilharam em desafio, mas ele se afastou encarando Joel. Quando pareceu julgar estar a uma distancia segura, murmurou.
- Cuidado, homem-cobra. A arrogância com os homens do deserto geralmente tem o seu preço. Mas perdão incomodá-lo, senhor. – e virou-se para sua pequena tenda onde facas e espadas curtas estavam penduradas por um cordão.
Joel então encontrou dois guardas a sua frente. Ambos usavam uma túnica marrom escura com o desenho da cabeça de um urso no peito. Sobre a cabeça, cintilava um elmo de aço e nas mãos seguravam alabardas. O da direita aproximou-se enquanto o outro estava encostado na parede próxima do portão olhando o movimento.
- O que quer aqui na cidade de Yenneiros, forasteiro? – perguntou calmamente, como se fizesse isso o dia inteiro.
Eles não desconfiaram de nada. Não é homem de senhor algum, devem ser só um cidadão comum.
- Vim me encontrar com um primo. – mentiu Joel forçando um sotaque sulista. – avisar que a mãe está doente e precisa de um homem em casa.
Deve ter forçado bem, pois o soldado apenas bocejou e levou a mão à boca antes de continuar.
- Pretende ficar até quando?
Até terminar o trabalho.
- Uns três dias, no máximo. – respondeu Joel. Isso não deixava de ser verdade. Yenneiros é uma cidade grande, mas sabia onde encontrar Dorian. Ele o esperava todo dia, às três horas na taberna O Bastardo e quando o encontrasse, seria só fazer o que viera fazer.
- Ótimo. Boa estadia. – respondeu o guarda. – Se precisar de um lugar pra dormir, a hospedaria da Rua Aroma pertence ao meu irmão. Diga ao dono que eu, Elios, lhe indiquei e ele pode fazer um desconto.
Joel forçou um sorriso com seus dentes brancos e alinhados. Não seria tão simpático se fosse você. Garanto que se for um bom guarda, vai se arrepender de ter me deixado entrar.
- Direi. – e se apressou para dentro da cidade.
Se fora da cidade havia muito movimento, dentro era pior ainda. As ruas estavam cheias de mendigos e pedintes encostados nas paredes das construções de madeira. Eram homens cegos, sem braços ou pernas, que dormiam ou conversavam uns com os outros naquela parte do subúrbio da cidade. Vestiam farrapos cinzentos e rasgados, remendados com outras cores e sujos de barro e terra. Um dos homens tinha uma cicatriz no rosto que descia desde os cabelos passando pelo lugar onde deveria haver um olho, mas o que realmente havia era um buraco escuro. Ele conversava com outro homem enquanto dividiam um frasco quase vazio de um liquido transparente. Duas crianças de barriga inchada corriam nuas pela rua enquanto uma mulher de cabelo crespo e ensebado corria ia atrás delas fazendo seus seios murchos balançarem para fora da roupa sem que ela lhes desse a mínima atenção. Pobre puta. Deve abrir as pernas pra qualquer um por um pão, veste-se com farrapos... Por que se preocuparia com o fato de estar com esse par de peitos horríveis pra fora?
A mulher agarrou uma das crianças pelo tronco e levantou-o enquanto o xingava com mais palavras do que Joel poderia contar. Depois, virou a criança de frente para si e deu-lhe um tabefe com força no rosto.
Joel passou por elas e continuou pela rua movimentada a trote. Por estar a cavalo, abria caminho facilmente entre a multidão, mas mesmo assim, não conseguia ir tão rápido quanto gostaria. De cima de Estrela Da Noite, podia ver tudo que se passava na rua. Homens maltrapilhos andavam de um lado para o outro com sacos nas costas. Mulheres carregavam frutas em sacolas. Sujeitos gritavam um com o outro... E um menino subia em uma caixa para ficar no alcance de Joel e tentar enfiar a mão no seu bolso enquanto passava.
Joel não lhe deu atenção. Ele deve saber bem o que acontece por aqui. Vai me ser útil. Fingiu que estava distraído com a tenda de um vendedor, encarando suas frutas de aparência exótica. Quando uma mão bronzeada e ágil se aproximou de seu bolso, agarrou-a, veloz como o bote de uma serpente, pelo pulso. Apertou firmemente o pulso com seus dedos fortes e puxou o garoto, fazendo-o cair do caixote. Continuou trotando com o cavalo pela rua, como se nada tivesse acontecido, ainda segurando o pulso do garoto, que era arrastado pelo chão como um saco de batatas.
- Me solte! Seu filho da puta! – rosnava ele enquanto se debatia.
Joel virou uma esquina e encontrou um beco escuro e apertado, entre uma pequena venda e um bordel de dois andares. Entrou lá, ainda carregando o garoto, e jogou-o com força contra a parede fazendo um baque surdo. O garoto gemeu de dor e desabou no chão. Joel desceu do cavalo e caminhou em direção a ele vagarosamente.
- O que você quer de mim, porra? Vai tentar me bater, seu verme? – perguntou o garoto de pele escura, marcada pelo sol, levantando-se desajeitado. Devia ter uns 10 anos ou menos. Estava descalço e usava uma camisa de algodão suja com um remendo vermelho no abdômen. Seus olhos eram aveludados e escuros, como seu cabelo sujo e ensebado.
- Quero uma informação. Nada mais. Se me disser o que preciso saber, soltarei você. – respondeu o homem de negro rispidamente. Soltarei mesmo. Garoto me escute... Faça o que eu digo.
Quando já estava completamente ereto, o garoto levou a mão direita até o bolso de sua calça e puxou uma navalha. Colocou-se em posição, como se estivesse pronto para lutar, empunhando a pequena lâmina de barbear.
- Se vier com gracinhas, eu abro o seu pescoço! – preveniu em voz alta, mas nada agressiva, por ser um som alto e esganiçado. – Seu sangue vai pintar esse beco inteiro de vermelho!
Joel levantou as mãos para o alto, arregalou os olhos e sorriu.
- Não vou tentar nenhuma gracinha. Pelo que vejo, a criancinha é perigosa.
- Se sou perigoso, as ruas me fizeram assim. – rosnou o garoto, entre os dentes cerrados.
Em um piscar de olhos, a perna de Joel subiu. O garoto não esperava tal reação, então o pé acertou a parte de baixo do punho do garoto, onde ele segurava a navalha. A lâmina de barbear subiu pelos ares, rodopiado no céu, e caiu a alguns metros dali enterrando-se na terra.
- Eu também tenho meus truques. – sussurrou ele se aproximando calmamente do garoto.
- Fique longe de mim! Estou avisando!
Chega de brincar com esse pirralho.
- Onde fica a taverna O Bastardo? – perguntou calmamente. O Bastardo era o tipo de taberna que apenas pessoas de má índole freqüentavam e menos ainda falavam sobre ele facilmente. Era um lugar onde os procurados da justiça iam pra beber e contar seus feitos. Um lugar aonde os mercenários iam, para descobrir o paradeiro de suas caças.
O garoto fitou-o com olhos assustados. Eram olhos que Joel conhecia muito bem. Irmã... Por um momento, pensou que ele correria e sairia do beco, perdendo-se na multidão da rua. Mas não. O olhar assustado do garoto transformou-se em algo semelhante a um olhar de raiva e então, repentinamente, cuspiu na sua camisa negra e berrou.
- Eu não vou ajudar nenhum forasteiro desgraçado! Você e todos os da sua laia, que queimem no mais profundo inferno!
Você deve ter se ferrado muito pra ficar desse jeito, parece um cão de rua.
Joel avançou sobre ele e agarrou-lhe o pescoço. Sem tempo de se esquivar, o garoto apenas enfiou as unhas no braço magro e pálido do homem de negro. Joel não apertou muito, mas manteve o braço firme. Seus olhos fitaram o garoto como se fossem feitos de pedra.
- Você vai me dizer agora, se não eu juro que arranco a sua traquéia agora. – disse friamente. Já vim até aqui, não vou perdê-lo.
O garoto arranhou o braço de Joel até o sangue aflorar da sua pele estranhamente branca. Seus pés começaram a tentar chutá-lo, mas suas pernas curtas não alcançavam.
- Me solta! – ladrou. – Me solta e eu te conto.
Joel largou o pescoço do garoto, que o apalpou como se tivesse medo de ter sumido. Estava vermelho e com as marcas dos dedos em torno da sua superfície.
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