terça-feira, 27 de setembro de 2011

Elizabeth e Rygar

As masmorras de Nevemoth se encontravam nas profundezas da terra e seriam completamente escuras, se não fossem os archotes que brilhavam friamente, pendurados nas úmidas paredes entalhadas na rocha negra. As trevas cobriam o local como uma sombra sólida que crescia desde o centro. Os corredores do calabouço eram íngremes e compridos, estendendo-se à frente em linhas retas. Neles, uma ao lado da outra, varias celas sombrias com barras de aço prendiam os Sussurros Da Noite.

Em meio aos inúmeros e vastos corredores, Rygar corria apressado, segurando na mão direita um pequeno lampião de ferro onde trepidava uma chama azulada. O homem não possuía mais do que vinte anos, e seus olhos claros procuravam qualquer saída daquele lugar sombrio. Enquanto passava pelos corredores abarrotados de celas, sentiu muitos olhos, cobertos de fúria e ódio, observando-o cruelmente. Esguio e magro como era, atravessou passagens apertadas e baixas, que eram comprimidas por todo o peso da gigantesca montanha acima.

Ao longe, Rygar viu um pequeno ponto luminoso que derramava sua claridade sobre uma escada de degraus altos. Continuou sua corrida frenética até passar por um portal de ferro, onde sob a luz do lampião, brilharam inscrições prateadas em alguma língua desconhecida. Sem dar atenção a isso, se apressou até finalmente chegar a uma sala ampla, com cerca de seis archotes, que davam cor à sala inteira. Quando se aproximou do centro do recinto, um forte rugido ecoou por todo o aposento, inundando o local com terrível força, fazendo os pelos da nuca do garoto estremecerem.

Está vindo. Maldição. Pensou enquanto virava-se em direção a um corredor estreito e apertava o passo.

O lampião balançava em sua mão e a chama trepidava friamente, quando escorregou em alguma poça de água criada pela umidade do local. Labaredas azuladas dançaram quando o vidro explodiu contra o chão e criou vida própria, movendo-se pelas. O fogo se espalhou como se consumisse álcool ou qualquer outro liquido inflamatório e começou a crescer em uma velocidade alarmante. O garoto havia batido a parte de trás da cabeça contra o chão duro e ainda estava atordoado quando se levantou. Saiu da área que as chamas consumiam e continuou a correr.

Atrás dele, o tilintar de garras apressadas, arranhando o chão freneticamente, e latidos ferozes, cheios de insanidade e raiva, avançavam pela masmorra, preenchendo-a com terror. Rygar virou-se para o corredor onde as chamas cresciam assustadoramente rápidas e vislumbrou a silhueta de um enorme lobo atravessa-las. Seus olhos eram a única coisa visível do animal, como duas esferas de gelo branco. Se fosse um animal comum, seu corpo teria sido clareado pela luz do fogo, mas isso não aconteceu, o lobo continuou escuro, correndo entre o fogo, como se fosse feito de sombras.

Rygar então subiu a escadaria o mais rápido que pode. Seus passos rápidos e largos ultrapassavam dois degraus de cada vez, até chegar finalmente a abertura de luz, onde uma grossa porta de madeira clara jazia aberta. Com um golpe rápido, atravessou o portal e fechou-a com toda a força, depois girou o trinco e certificou-se de que estava trancada.

Finalmente.

O garoto virou-se e percebeu que estava em uma sala comprida, completamente iluminada por chamas claras dentro de uma grande lareira de pedras escuras. Em volta do fogo, grandes almofadas de cores variadas estavam postas no chão liso de madeira. Eram feitas de algodão fino e em sua superfície, vários desenhos de linhas douradas as decoravam. Entre as almofadas, Elizabeth estava sentada de costas para o garoto, como se observasse a lenha queimando dentro da lareira.

Sobre suas costas nuas, alvas como um toque de neve inocente, um cabelo espesso e comprido brilhava, descendo em um emaranhado de fios desnivelados, escondendo uma tatuagem que lhe descia ao longo da coluna com finas linhas bem adornadas e entrelaçadas umas nas outras, seguindo o caminho de sua coluna. No topo da cabeça de Elizabeth, dois chifres curvos e grandes como de bodes, desciam-lhe até próximos das orelhas. Eles reluziram como prata polida perante o fogo da lareira.

- Onde estava? – sibilou uma voz fria, porém calma e sedutora, com as letras bem pronunciadas.

Rygar assustou-se ao ouvir a voz de Elizabeth. Toda vez que ela lhe dirigia a palavra, era para lhe passar um castigo terrível.

- Nas masmorras, como me foi ordenado. – balbuciou Rygar assustado. Sua voz trepidava como se um frio assassino tivesse tomado-lhe conta.

Um rugido fraco soou do outro lado da porta da qual o garoto havia vindo. Soou até se transformar estranhamente rápido em um lamento temível de dor e agonia.

- Você nunca cumpre direito o que lhe é ordenado. Como o Uivo Sombrio escapou? – perguntou Elizabeth.

- Eu fui dar-lhe carne, como vossa graça ordenou. – disse Rygar. - Porém, quando abri o compartimento, ele me atacou e eu não entendi direito o que se passou, foi muito rápido. Quando percebi, ele já estava na minha frente. Só tive o tempo para correr porque a corrente que o segurava ainda estava forte para detê-lo por alguns segundos.

Elizabeth levantou-se serenamente de sua almofada. Seu corpo completamente despido era alto e imponente. Possuía formas completamente simétricas e perfeitas, com pernas compridas e fortes. Ela virou-se para Rygar e caminhou em sua direção com uma delicadeza e beleza jamais vista. Seu rosto era forte e anguloso, com sobrancelhas finas e curvas sobre um par de olhos negros e sem brilho como uma madrugada sem lua. Seus lábios eram carnudos e de um vermelho vivo, contrastando com sua pele completamente branca. Mas algo tirava a beleza insuperável da Dama Da Noite. Seu antebraço esquerdo era coberto com o que, a primeira vista, poderia parecer uma luva comprida e negra, mas não era. Era carne em decomposição, preta como tinta, salpicada com leves toques cor de sangue. Não possuía unhas, apenas dedos, também negros, afiados como garras, longos como adagas.

Quando estava a poucos centímetros do garoto, abriu um grande sorriso, porém era uma visão perturbadora. Duas fileiras de dentes pontiagudos e extremamente polidos surgiram sob seu par de lábios cor de rubi, mas de alguma forma, era um sorriso muito confortador.

Rygan tentou sorrir de volta, mas não conseguiu mover-se. Estava completamente hipnotizado pelo atrativo corpo de Elizabeth.

- Não consegue falar, pequenino? – ela perguntou, ainda olhando para ele com seus olhos negros e sem vida. Agora, sua voz soara mais feminina e agradável.

Ele abanou a cabeça em um movimento rígido.

- Diga-me, porquê? – perguntou.

Rygan tentou falar, mas Elizabeth parecia ter-lhe jogado algum tipo de feitiço. Seus lábios tremiam quando tentou falar, mas acabou balbuciando qualquer coisa impossível de se entender.

- Eu não entendi. – disse ela abaixando lentamente até o pé do ouvido do garoto. – Pode repetir?

Os seios dela eram grandes e firmes, maiores do que Rygan imaginou ser possível, e estavam a pouquíssimos centímetros de seu rosto.

- Rygan, porquê não me responde? – murmurou ela, ainda ao pé do ouvido do garoto. – nunca esteve com uma mulher antes? Está me desejando?

Ele permaneceu calado.

- Não pode me esconder as coisas. Eu sei de tudo e sei o que está pensando. –

Rygan nunca havia visto nada tão belo em sua vida. Já esteve com outras mulheres anteriormente, na verdade, a serviço da Dama Da Noite, esteve com mais do que poderia contar, mas aquilo era diferente. Ela era a mulher mais bela que Rygan já havia visto em toda a sua vida. Ele a desejava. Desejava como nunca desejou nada em sua vida.

- Porque fez o trabalho errado, Rygan? – sibilou ela com sua voz sedutora. - Estou cansada dos seus erros. Se me contar, eu prometo fazer o que deseja no seu intimo, mas apenas se me contar.

Era uma armadilha, ele sabia, mas não conseguia dizer nada sobre isso. Por fim disse.

- Eu não queria errar assim, minha senhora. As coisas simplesmente escaparam do meu controle, como anda acontecendo sempre.

Ela voltou a olha-lo com seu par de olhos escuros. Eles faiscaram como as labaredas atrás dela por alguns segundos, então finalmente disse.

- Era isso que eu precisava, Rygan. Pode pedir o que deseja. –

- Desejo a possuir, minha senhora. – respondeu ele imediatamente, mesmo sabendo que se tratava de uma armadilha e não conseguindo resistir.

Ela sorriu mostrando seus dentes afiados.

- Como deseja, meu pequenino. – e deu-lhe um beijo de morte.

Sufean em Ryhont.

Exausto e ofegante, Sufean corria velozmente entre a densa floresta de Ryhont.

Finas e leves, as pernas do garoto pálido moviam-se graciosamente perante as imponentes e gigantescas arvores de inverno, cujas folhas estavam cobertas por uma fina camada de gelo. Sobre uma camisa branca e simples, um manto negro aberto e sem adornos ondulava em meio ao vento gélido que cortava o ar, dando vida a flocos de neve que caiam de um céu pálido e pesaroso.

O suor descia pelas têmporas suas têmporas em finas linhas de sal e água e seu peito ardia como se estivesse sendo tocado pela brasa quente. Calor. Como eu sinto falta disso. Pensou em seu intimo.

O frio chegara sem aviso e penetrara pela pele de Sufean, congelando-lhe a pele, rachando-a e queimando-a ferozmente, como um ser vivo com vontade própria que fazia de tudo para atrasar sua jornada. Breves geadas caiam às vezes durante alguns minutos, o suficiente para encharcar as roupas suas roupas.

Estava perseguindo o Guardião há dois dias praticamente sem descanso e toda a pista que encontrara neste ultimo dia, foram os rastros de uma corrida apressada para dentro da floresta e o cheiro que ele sempre exalara, um odor fétido de carne em decomposição. As curtas paradas de Sufean eram apenas por tempo suficiente para recuperar o fôlego e comer alguma coisa. Sem fogueiras, sem carne, sem nem um minuto sequer de sono.

Por muitas vezes encontrou diversos tipos de viajantes pelo caminho, mas estes iam ficando cada vez mais escassos à medida que avançava em direção ao norte.

Começou então a diminuir a velocidade gradativamente até, por fim, interromper a corrida. Colocou as mãos suadas e sujas de terra sobre o joelho flexionado, arqueando a coluna para baixo.

- Desgraçado. – murmurou para si mesmo entre as pesadas golfadas de ar, enquanto tentava recuperar o fôlego. – Já deve estar a quilômetros daqui.

Então, puxou seu grosso e liso manto para trás, revelando um punho de espada, feito de couro negro simples e sem adorno, dentro de uma bainha gasta presa ao seu cinto por uma fivela prateada. Enfiou a mão dentro de um dos milhares de bolsos internos da vestimenta e puxou uma pequena corrente de anéis de aço entrelaçado e na sua ponta, da escuridão, surgiu uma chave pequena e dourada, de um formato peculiar, entalhada com muita delicadeza e detalhes. Sua forma adornada era deslumbrante e parecia pertencer a alguma sala de tesouros ou segredos ocultos.

- Aquele bastardo não vai me escapar. – resmungou.

Pendurou a corrente em volta do pescoço, prendendo-a com um fecho simples e escondeu a chave sob a camisa.

Novamente, levou sua mão para o interior do manto e puxou de outro dos múltiplos bolsos, um comprido biscoito alaranjado. Mordeu-o e mastigou-o com seus dentes estranhamente brancos e polidos, que brilharam no crepúsculo. Essa vida não vai me encher a barriga por muito tempo. Pensou.Mas, não posso parar, não ainda. Preciso pegar aquele filho da puta e rasgar-lhe a pele. Sentir o sangue dele no meu rosto.

A noite escura caiu sofre Sufean. Nenhuma luz, tanto das três luas, quanto das estrelas, invadiam a floresta, pois as arvores de inverno eram revestidos de folhas enormes em seus galhos, que impediam a claridade de penetrar o local. O vento castigava o garoto com suas fortes e frias rajadas, chicoteando seu rosto como um capataz enfurecido. Sufean, batendo os dentes e completamente encharcado, cobriu o topo da cabeça usando capuz de seu manto e caminhou tão silenciosamente, com seus pés ágeis e habilidosos, que nem mesmo as estranhas criaturas da noite notaram um estranho em sua floresta.

Depois de algumas horas de caminhada rítmica e uniforme, apertou o passo até transforma-lo em uma leve corrida, mesmo que suas pernas ainda latejassem e tremessem de dor.

As arvores tornavam-se mais altas e velhas à medida que avançava para dentro do coração da floresta, causando-lhe certo receio de continuar a se aprofundar na mata. Então sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha, arrepiando os pelos de sua nuca. Era como se olhos, muitos olhos, estivessem pairando sobre ele, observando-o, escondidos na escuridão da mata. Ele não os via, nem sentia seu cheiro, muito menos ouvia qualquer ruído diferente. Apenas o forte assobio do vento e o farfalhar das folhas acima dele. Finalmente parou.

O que diabos é esse medo? Perguntou a si mesmo.

Ficou parado por um tempo, observando a escuridão a sua volta, tomando cuidado para não fazer qualquer barulho. Nervosos, seus olhos azuis moviam-se para todos os lados, brilhando nas trevas como um foco de inocência. Colocou a mão direita dentro do manto aberto e pousou-a sobre o cabo da espada que pendia no seu cinto. Agarrou-o com firmeza e sentiu uma leve sensação de segurança e pôs-se a caminhar em meio à mata.

Quando estava a certa distancia de onde sentira os olhos na escuridão, Sufean correu e escondeu-se atrás de uma arvore de tronco grosso. Abaixou-se calmamente,sem fazer qualquer barulho, até quase deitar sobre o gramado, então virou a cabeça de lado e tocou a orelha direita no chão. Após alguns segundos, respirou fundo aliviado e esboçou um sorriso.

- Eu ando tenso demais. Devia ser apenas um animal selvagem com seus filhotes. – disse para si próprio e retomou a caminhada.

Uma pequena lontra-das-neves estava escondida em uma fenda entre as fortes raízes de uma arvore. Seu corpo revestido por uma pelugem alva enrolava-se em volta de três filhotes, ainda pelados e rosados, que sobraram da ninhada, cujo frio não havia matado ainda. Seus olhos curiosos, acostumados com a escuridão, brilharam em meio à noite observando o homem de negro afastando-se e esconder-se atrás de um tronco de arvore. Farejou o vento e um ar frio penetrou em seus pulmões, fazendo-a estremecer.

Ontem, um homem de pelos prateados e rígidos com um monstro ao lado. Hoje, um homem de pelos negros vagando sozinho por ai. Há anos que ninguém vinha até essa parte da floresta.

Virando o pescoço, seus olhos fixaram-se nos filhotes, que tremiam de frio.

Coisas estranhas estão acontecendo ultimamente e outras estão para acontecer. Espero que estejam vivos para ver isso.

As geadas haviam cessado por um longo tempo e a silhueta de uma neblina vinha crescendo no ventre da floresta. À medida que Sufean se embrenhava em meio à mata, gradativamente, o vento começou a cessar e tornar-se mais ameno. O farfalhar das folhas cobertas por gelo nos galhos das arvores começaram a tornar-se mais escassos, até mesmo os poucos animais silvestres que apareciam na escuridão da noite, curiosos para observar o viajante, deixar de aparecer. O branco pálido da neblina tornava-se cada vez mais denso, tornando o avanço cada vez mais difícil. Durante a noite inteira, a energia do garoto foi consumida pela corrida. Após algumas horas, os primeiros raios de sol finalmente irromperam no horizonte, afastando a escuridão da noite e sobrepujaram as estrelas. O dia amanhecera mais cinzento que o anterior, mas o simples fato de sentir um mínimo de calor sobre, já reanimou o garoto, que parou sua corrida frenética e postou-se a caminhar novamente. Por um instante, podia jurar que havia ouvido o assobio calmo de um pássaro, avisando que já havia amanhecido, mas não parou para procura-lo.

Continuou avançando entre as arvores por algum tempo, até que a neblina tornou impossível continuar. Os grossos troncos de madeira que se erguiam em direção ao céu como torres, logo começaram a desaparecer em meio à massa branca uniforme que crescia cada vez mais, engolindo Sufean e trazendo-o para seu núcleo.

O garoto continuou sua marcha lentamente com as costas curvadas em direção ao chão, se olhasse para frente, via apenas o branco infinito da neblina, portando ficou feliz por poder ver a grama acidentada no chão.

Finalmente sentiu o cheiro no ar. Um odor familiar de carne pútrida que lhe queimava o pulmão quando inalado. Seus pés dançaram entre as raízes, galhos e pedras, tomando todas as precauções necessárias para não fazer qualquer ruído. Seus olhos faiscavam em direção à frente. Sua mão já jazia no interior de seu manto negro, onde seus dedos estavam fechados com toda sua força em torno do cabo de couro de sua espada.

Seus pés cautelosos avançaram à medida que o terrível odor se tornava cada vez mais forte.

Será que finalmente encontrei aquele desgraçado? Pensou começando a sentir-se animado com o cheiro estranho. É o filho da puta, tenho certeza. Só um bastardo como ele teria esse cheiro.

De súbito, um vento frio soprou do norte fortemente. Pego de surpresa, Sufean deu um passo para trás a fim de se firmar ao solo e continuou caminhando com um braço à frente dos olhos e seus cabelos esvoaçando para trás. Seu manto negro era chicoteado pelo vendaval e se não estivesse preso ao pescoço do garoto, teria voado para o longe e nunca mais o encontraria. A neblina que se estendia à frente de Sufean foi finalmente dissipada pelo vento, abrindo uma pequena parte onde o nevoeiro não podia, ou não queria, avançar.

Essa estranha clareira, cujo era o único lugar que os olhos do garoto podiam ver alguma coisa, estava preenchida com uma grande lagoa, onde sua superfície estava completamente calma e lisa, como se nem o tênue toque do tempo a tivesse profanado. A água tinha um aspecto virgem e cristalino, brilhando em meio ao pálido cinza do céu nublado, como se estivesse coberta de encantamentos antigos que a protegiam do mundo exterior. A única coisa que tornava tudo aquilo estranhamente assustador, era o fato do odor peculiar ainda pairar sobre o local.

Sufean olhou em volta e viu que varias pedras estavam aglomeradas em torno do lago. Pedras de todas as formas e tamanhos. Pontiagudas, lisas, pequenas, enormes, mas a maioria possuía o formato característico de alguns animais, como se tivessem sido entalhadas daquela forma propositalmente. Uma, aos olhos do garoto, lembrava-lhe um enorme leão cinzento observando a água. O garoto avançou cuidadosamente e se aproximou do lago. A água incólume brilhava como se fosse feita de prata lisa. Subiu agilmente sobre uma enorme rocha que lhe lembrava um enorme crocodilo, aproximadamente da altura de seu ombro, também de frente para o lago. Caminhou sobre o dorso áspero de rocha do animal e sentou-se onde seria sua cabeça.

Esse lugar é tão calmo e passa tanta tranqüilidade. Eu poderia ficar aqui por um bom tempo. Pensou Sufean abrindo um largo sorriso. Jogou o corpo para trás e deitou-se sobre a rocha lisa, contemplando o céu com seus olhos perspicazes. Havia se esquecido da urgência que antes rugia em sua mente. Que tipo de magia ronda esse estranho lugar? Parece coisa dos elfos, mas eles já não vivem pelo norte há séculos.

O sussurro na natureza ecoava pela clareira, como se toda a sua beleza estivesse adormecida naquele local há muito tempo. Como se Sufean a tivesse libertado.

Uma estranha sensação de calor começou a tomar conta do garoto. Sentiu como se estivesse sendo afagado pela brisa calma, como se as arvores sorrissem para ele, como se o lago o amasse profundamente. Sentou-se novamente e seus olhos percorreram os animais de pedra. Sentia fome, muita fome e por um estranho acaso, algumas frutas alaranjadas do tamanho da cabeça de um cachorro estavam caídas em torno da clareira.

Desceu do grande crocodilo em um salto e caminhou calmamente, passando sua mão suavemente pela superfície fria das rochas. Apanhou uma dessas frutas e percebeu que elas não possuíam casca ou semente. Deu uma mordida e se surpreendeu com o gosto doce e delicioso que se espalhou pela sua boca. O liquido que saia a cada vez que ele a mordia parecia ter sido feito de uma mistura de mel e varias outras frutas deliciosas. Comeu ela em poucas mordidas. Depois, cruzou o caminho entre as pedras e observou todas calmamente. Cada uma delas possuíam uma forma única e perfeitamente bela, quase como esculturas. Algumas se assemelhavam a grandes animais quadrúpedes, como raposas e lobos de tamanhos exagerados, mas foras outras que chamaram a atenção do garoto. Havia três completamente distintas e maiores que as outras, fazendo com que o garoto não tivesse nem metade da altura de qualquer uma delas. Uma assemelhava-se a um grande cavalo de batalha, mas onde seria a cabeça, caso realmente fosse um, havia uma ponta do tamanho de um braço adulto emergindo e estendendo-se para o céu como um chifre. Ao seu lado, uma enorme serpente com o dorso acidentado cheio de pequenas pontas, se inclinava em direção a água, mas havia algo de diferente, possuía dois pares de patas fortes e robustas, cravadas ao chão. O animal parecia uma criatura imponente e orgulhosa, mostrando sua beleza selvagem. A ultima era a menor de todas, seu corpo assemelhava-se a um felino elegante e gracioso, mas seu rosto lembrava um rosto humano, completamente deformado e com um sorriso maligno abrindo-se, mostrando fileiras de dentes pontudos como de tubarões e afiados como navalhas. A calda, por sua vez, era comprida e fina como a de um gato e na ponta, dezenas de espinhos pontiagudos atravessavam-na.

Um unicórnio, um dragão e uma manticora. Porque tais esculturas estariam aqui? Pensou em seu intimo.

Subiu sobre a calda serpenteada do gigantesco dragão de pedra e escalou-lhe o lombo rapidamente, como fez com o crocodilo. Segurou firmemente nos lados do animal e se arrastou de bruços em direção ao focinho. Quando estava completamente deitado sobre a cabeça da criatura de pedra, parou para observar o lago novamente.

O local continuava suave e intacto. Uma sensação aconchegante começou a tomar conta de cada centímetro de seu corpo, como se o sol brilhasse sobre ele e lhe aquecesse como nunca havia lhe aquecido. De repente, um estranho sono começou a tomar conta de Sufean, tornando suas pálpebras pesadas e fazendo-as descerem lentamente. Relutante, o garoto esfregou os olhos na esperança de que afastasse aquela estranha sensação. Tenho algo para fazer. Tenho. Pensou. Então, em meio ao silêncio completo, um som baixo começou a ecoar e dançar pela clareira, como uma canção lenta, que parecia dizer-lhe que deveria descansar, que o calor viria e a fome seria levada para bem longe dali.

Uma impressão estranha pairava sobre o garoto, como se alguém estivesse disposto a dar tudo que ele precisasse. Amor, carinho, felicidade. Tudo que precisou em sua vida. Como se um fogo estivesse lhe abraçando com braços quentes.

Eu tinha uma missão, mas não me lembro, eu tinha algo a fazer.

Um vento calmo passou desapercebido pela água lisa da lagoa ,e nele, folhas douradas dançavam e rodopiavam.

Ela quer que eu durma, que me fazer bem. Eu sinto.

Um beijo quente roçou-lhe os lábios e lhe causou certo espanto por um instante, mas a sensação de algo lhe dando prazer foi eminente.

Seus olhos brilharam e sentiu seu rosto corar. Havia algo ali com ele, havia alguém. Uma garota, quem sabe?

Eu quero mais.

Seu corpo sentiu um calor quase humano tocando-lhe totalmente, esquentando cada centímetro de sua pele e fazendo seu coração bater mais forte. Sua respiração calma ofegava enquanto sentia um coração junto ao seu, palpitando no mesmo ritmo

Era uma sensação maravilhosa, nunca havia sentido algo desse jeito. Se sentia vivo como nunca havia se sentido. Seus olhos semicerrados cintilavam quando sentiu seu braço sem o manto e uma mão tocando-lhe por baixo de sua camisa.

Dê-me prazer.

Sentiu um par de lábios quentes e carnudos beijarem seu pescoço e mordiscar-lo delicadamente. Um seio roçava em seu peito lentamente então uma mão quente tocou-lhe o rosto e seus dedos seguraram seu queixo.

Um beijo. Pensou, antes de finalmente caiu em um sono profundo em meio aos sussurros do lago.

Elizabeth e o Bardo.

Elizabeth subia tranqüilamente suas escadarias de pedra negra. As tochas ao longo do caminho iluminavam o vestido preto e comprido que trajava escondendo seu corpo escultural.

Quando chegou ao final da escada, encontrou um patamar extremamente largo e infinitamente comprido. Murmurou algumas palavras ao ar e pequenos lampiões pendurados por cordas brilharam com uma chama amarelada muito forte que iluminou as proximidades. Todas as paredes eram completamente preenchidas de estantes de madeiras que se estendiam ao teto longínquo e escuro, onde a luz da chama não atingia. Todas as estantes estavam abarrotadas de livros de todas as cores, tamanhos e formatos, mas todos tinham algo em comum, eram muito antigos.

Atravessou o salão em passos firmes, que ecoaram pelo horizonte escuro, até chegar a uma serpente entalhada na rocha, envolta de um pedestal de mármore. Sobre ele, estava um grande e volumoso livro vermelho de paginas douradas, aberto exatamente no meio. Ao lado, jazia um tinteiro de vidro com tinta negra e uma pena branca e comprida.

Elizabeth molhou a ponta da pena na tinta e escreveu na parte de cima da pagina em branco com uma letra bem trabalhada e graciosa. “Kunor Revgarn Otkalyr” e esperou.

Em alguns minutos, um ruído curioso encheu as paredes do aposento, como se alguém ou alguma coisa arranhasse repetidamente a madeira com unhas compridas. O ruído começou a se tornar mais alto e acontecer mais rápido, até finalmente parar.

- Kunor Revgarn Otkalyr, minha senhora? – disse uma voz áspera vinda de cima.

Elizabeth olhou para uma das prateleiras de cima e, a dez metros de altura aproximadamente, uma estranha criatura estava parada como uma aranha.

Seu rosto se assemelhava ao de uma mulher com leves feições de uma serpente. Seu cabelo negro e liso lhe descia sobre o rosto e uma língua com duas pontas serpenteava para fora da boca. Seu corpo era cinzento e estava nu, mostrando suas articulações deformadas e seus membros tortos nas juntas e ligeiramente mais compridos.

- Sim, Urkana. – respondeu Elizabeth, fitando a criatura abominável com seus olhos negro.

Urkana balançou a cabeça e uma fina linha de saliva escorreu pela sua boca. Rapidamente, a criatura postou-se a escalar estantes como uma aranha. Fazendo o mesmo barulho desprezível que fez ao chegar, desapareceu na escuridão do teto.

Elizabeth olhou a sua volta.

- Devia ter mandado algum servo trazer-me uma cadeira. – resmungou.

Elizabeth estava sentada de pernas cruzadas, ainda com seu comprido vestido negro, em uma gigantesca poltrona dourada de estofado vermelho, completamente enfeitada com linhas semelhantes a raízes negras. Sobre sua perna, um livro grosso de capa esverdeada com letras brilhantes, talhadas em linho descrevia ‘Kunor Revgarn Otkalyr.’.

A saleta era pequena e revestida de móveis de madeira. Algumas estantes e mesas totalmente cheias de livros, que estavam empilhados e amontoados, preenchiam o lugar. Vários papéis estavam jogados por todos os cantos, completamente escritos com anotações e observações. Uma chamava brilhava dentro de uma esfera redonda e transparente, iluminando o apertado aposento completamente.

Dois batidos na porta soaram e preencheram o vazio do silencio.

- Entre. – disse Elizabeth em voz alta.

A porta de madeira abriu-se lentamente, revelando algo da altura de um homem completamente coberto por um manto marrom-escuro e volumoso que lhe cobria os pés, as mãos e o topo da cabeça. Tudo menos o rosto. O rosto estava escondido por uma risonha mascara branca de teatro.

- Alguém deseja vê-la, minha senhora. – disse o ser por baixo da mascara.

Elizabeth esboçou um meio sorriso desajeitado. Sabia quem era.

- Deixe-o entrar. – respondeu com delicadeza.

- Ao seu comando, minha senhora. – disse voz por baixo da mascara antes de sair e fechar a porta.

Elizabeth, que agora usava um vestido negro como o outro, porém decotado e com a barra na altura da coxa, esperou alguns minutos até ouvir outra batida na porta.

- Entre. – disse, com uma voz mais amigável do que de costume.

A porta abriu-se lentamente, fazendo um ruído arrepiante, e um homem entrou na sala em passos firmes.

Era um homem com quase vinte anos, de rosto fino e simétrico preenchido por uma barba por fazer. Seu cabelo era ralo e claro, quase dourado. Seus olhos esverdeados brilharam perante a chama dentro do vidro. Trajava uma camisa branca e sem adornos de algodão, botas de viajem e uma capa azulada e cheia de bolsos internos. Preso às costas, uma capa de couro deixava visivelmente claro que trazia um alaúde e no cinto balançava pendurada uma bainha, com varias escrituras em línguas antigas e desenhos complicados, e o cabo da espada possuía na ponta, um emblema com uma pedra negra reluzente.

- Você precisa se mudar daqui, minha senhora. – Sua voz tinha um tom firme e decidido. – O caminho até aqui é longo e cheio de perigos.

Elizabeth abafou um risinho com as costas da mão humana, cheia de pulseiras e anéis dourados abarrotados de pedras cintilantes, e respondeu.

- Perigos? Os únicos perigos por aqui são os meus. E foi de seu desejo vir por conta própria, bardo. Você é um viajante e está reclamando de caminhar?

O bardo colocou seu alaúde dentro da capa em um canto, apoiado verticalmente em uma mesa, e olhou em volta. Quando encontrou um banquinho alto de madeira, puxou-o para perto e sentou-se de frente para Elizabeth.

- Estou reclamando da dor que estou sentindo nos pés. – resmungou ele. – botas de segunda mão nunca me fizeram bem.

- Eu poderia dar-lhe tudo que quisesse. – disse ela encarando-o fixamente com seus olhos negros, agora sérios e serenos. – basta pedir ou aceitar os meus presentes.

- Eu não preciso disso, posso viver de musica e comer as notas do meu alaúde. – disse ele passando a mão sobre a barba em seu queixo com um tom ironicamente pensativo. – a propósito, você não está sangrando, não é?

Elizabeth abriu um meio sorriso pálido e depois lançou um olhar de desgosto para o homem.

- Você sabe que eu não sangro. Idiota. – disse com sua voz áspera e fria.

Ambos olharam-se por alguns segundos, imóveis, antes de soltarem uma risada alegre. A do bardo demorou mais para cessar.

Caídos.

- Os dias estão ficando cada vez mais escuros. – murmurou Arkhain com seus olhos perspicazes observando o horizonte.

- Talvez. Mas talvez sejam apenas as sombras se tornando mais negras. - respondeu Tayar que estava sentado ao seu lado cutucando uma pequena fogueira com um graveto seco. Não havia vento.

Arkhain sorriu com o canto dos lábios.

- Se for assim como diz, estamos em vantagem. – disse em um tom brincalhão.

- Não. Não é isso.- começou Tayar, enterrando seu graveto em meio às labaredas. – Aqui, até as sombras parecem mais ameaçadoras. Não se lembra daquele Guardião do norte? Das historias que contou? Confie em mim, Arkhain, essas terras escondem coisas ruins.

- Deixe os presságios ruins para mais tarde. Fomos treinados para enfrentar o que quer que apareça. – respondeu.

- E mesmo assim, as coisas estão com estão. – respondeu Tayar com uma voz áspera. – estamos perdendo.

Ambos contemplavam as ruínas de uma antiga metrópole, no topo do que um dia havia sido um pequeno prédio cinzento de seis andares.

A imagem era clara. Destroços de uma antiga civilização que outrora havia governado o mundo. Edifícios, antes altos e imponentes, agora jaziam caídos sobre o solo e intocados ao longo dos anos, preservando seus restos esquecidos pelo tempo. Casas, alojamentos, empresas, tudo era melancólico. Tudo aguardava o inevitável desmoronamento. Tudo voltava ao pó, areia e cinzas.

- Estranho, não? As coisas acabarem assim. – disse Arkhain após alguns minutos no profundo silencio. Nem o vento andara assoviando aquele dia.

Tayar respirou fundo e suspirou.

- Todos já sabiam que um dia deveriam pagar pelo que aconteceu. – respondeu.

- É. Mas não deveria ter sido assim...

- Nada será como já foi. Está na hora de se acostumarem ao lado de fora da Fortaleza. Vocês já são Caídos, não crianças. – ouviu-se a conhecida voz grave e sonora, vinda de trás dos dois homens.

Quando Arkhain e Tayar viraram-se, encontraram a figura cansada de Myran Lartanis, um homem de idade avançada, passando dos quarenta.

- Sim, senhor.- disse Arkhain virando-se para o homem. - Mas a simples visão do lado de fora já me causa náuseas. Todas essas coisas ruins acontecendo, é difícil se sentir habituado.

Vandalism.

Vandalismo. Violência. Violação.

Enquanto os dois guardas estapeavam três drogados em uma parede de tijolos, Adam teve tempo para escrever com spray de tinta preta na porta da viatura policial. Liberdade. As palavras transmitiram exatamente o objetivo de tudo isso.

Agora, um dos guardas corria em sua direção com um cassetete em mãos. A rua cinzenta se estendia à frente. O aprisionamento eminente atrás.

Subindo por uma grade, foi fácil deixar a perseguição para trás. Porventura, o homem aparentou esquecer-se do que ocorrera. Idiota.

- Filho da puta! Vagabundo de merda. – foi o que ele disse.

A natureza do ser humano selvagem aciona os gatilhos. Já dizia Jackes, seu amigo.

Talvez ele estivesse certo, pois o guarda puxou uma trinta e oito e disparou através do metal entrelaçado das grades.

Sangue. O mais belo rubi vermelho desceu do peito de Adam como uma linha. Ele não podia mais correr. Caiu sobre o chão e o céu se tornou escuro.Um crime necessário, ele, o guarda, dirá.

Tudo começara há um ano atrás. Sua namorada, Katie, lhe ofereceu o incrível mundo novo. Quando seus olhos brilhavam em raízes e ramificações avermelhadas. O único e primeiro verão, desde que os novos amantes da sua mãe haviam aparecido: Jack Daniel’s, Johnnie Walker e Jim Beam.

Katie devia dinheiro a um drogado, Joseph, mas apenas devia. Pagou-lhe cada centavo em gemidos de dor, quando ele a estuprou. Foi a gota d’água. No dia 21 de julho, seu corpo foi encontrado com dez buracos de faca no peito e rosto, em frente a um boteco que fedia a mijo.

Assim foi o inicio. A cidade passou a temer os homens que andam pela madrugada. Eu via os seus rostos. Vi Katie nua e sorrindo. Vi Andrew correr sangrando. Vi Nathan trancando sua porta. Adeus, amigos.

Quando percebi, estava me tornando um caçador de todos que fizeram mal a minha doce e gentil garota. Muitos haviam lhe feito mal. Os bueiros entupiam com tanta carne dilacerada e o porta-malas do meu carro fedia a podridão. A sarjeta desta cidade chorava lagrimas e espumas. A imundície aflorava.

A desgraçada havia me traído com cara um dos seus ex-amigos. Ela pagou. Pagou sim. Só teve tempo que murmurar entre os gemidos.

- Não, Adam, eu prometo que vou parar...

Ela teve a escolha dela. Agora havia me tornado isso.

Os policiais corriam de um lado para o outro. Diziam que seus pais haviam sido justos e honrados. Suas fardas azuladas escondiam seus verdadeiros rostos hipócritas e hediondos. Apreenderam a minha cocaína. A única garota que nunca iria me trair. Fazer-me sofrer. A minha dama da noite.

Cigarros e whisky não mudavam nada. Eu via Katie entre a fumaça e poças de álcool espumante no carpete. Via seus olhos reluzindo friamente em cada gota.

Acreditar no trabalho honesto? No suor como recompensa? Isso não era vida. Não para mim. Eu tinha dezoito anos. Queria correr nu por ai. Queria esmurrar o rosto velho e cansado de um mendigo do centro. Queria quebrar uma garrafa de vodka na cabeça de alguém. Queria estourar uma cadeira de madeira nas costas de um filho da puta qualquer.

Essa trilha foi traçada. Essa trilha me levou ao precipício.

Agora eu era um vândalo. Senhorita Grace me arranhava enquanto eu a possuía. Edward furava-me com uma tesoura, enquanto eu rasgava seu rosto com uma faca. Até Jackes, meu melhor amigo até hoje, foi apunhalado pelas laminas da minha garrafa quebrada.

Em casa, a vida era pior.

Mellissa apanhava todos os dias do marido, Peter. Peter odiava a sua vida. Ele gritava que ela saia com outros homens e ela chamava-o de ‘corno’ ou ‘chifrudo’.

Minha irmã comia cosméticos em seu quarto e cortava os pulsos ao som de Nirvana. Eu nunca nutri muita paixão por musicas depressivas. A tristeza não era nada. A tristeza era fraqueza. Eu preferia Slipknot.

Rosas? Rosas que se fodam. Eu não ligo a mínima para elas. Não mais. Na cama cheia de espinhos e pétalas vermelhas, era fácil sentir-se cansado.

Hollywood mostrava-me a verdade. Ossos de plástico partidos. Poças e mais poças com litros de groselha pra todo o lado. Armas atirando em qualquer um. Intelectuais e mulheres brancas e sedutoras com sua fala mansa.

Que tudo isso queime no inferno. Sem isso, ninguém saberia o que dizer. Vermes do mundo moderno. Criaturas que rastejam por canos entupidos de merda por dinheiro, vaginas e cigarros.

A política tira qualquer prazer que as pessoas possam ter. Um cadáver a mais não é nada. Vamos matar em nome dos grandes. Vamos para as guerras pessoais trajando suas bandeiras. Vamos fingir um falso patriotismo quando qualquer merda de esporte estiver ai.

Eu estou fora de controle.

Eu estive correndo entre os becos. Eu caçava qualquer utopia imoral que me desse prazer. Eu queria liberdade. Eu queria voar por ai em uma Harley Davidson. Comecei a minha dieta de licor e drogas muito cedo, já dizia Jackes.

Eu estou fora de controle.

Uma prostituta barata me chamava para baixo de um viaduto. Ela sabe o gosto do dinheiro. O gosto que ela sentiu.

Um dono de boteco feliz por minhas lagrimas caírem em seu copo e se misturarem ao álcool. O dinheiro pagou-lhe a liberdade. Pagou o assaltante que o matou em sua casa.

Alimentem suas mentiras, ratos. Cresçam entre o consumo que devora as emoções.

Vandalismo é apenas uma palavra feia para liberdade.

Eu sou um sociopata urbano.


Mais tarde, conheci Alicia. Ela tinha cabelos escuros e remexidos. Como eu a amei. Ela me mostrou um caminho. Ah se mostrou. Mas não deu muito certo. Ela era muito apegada ao irmão, que me atacou sem motivos. Maldito retardado.

Alicia, se você me deixar, eu tirarei suas calças e lhe darei tudo o que deseja. Mas ela não quis. O irmão mordeu a minha orelha. Agora ele é retardado e cego de um olho.

Continuamos nos encontrados escondidos. Eu lhe ensinei as minhas artes, mas ela não me queria como namorado. Queria como amante.

Ela tinha um namorado. Joel.

O sistema me induziu a esse futuro.

O gatilho reduziu qualquer possibilidade de redenção.

Alicia, Katie, Jackes, adeus.