quinta-feira, 21 de junho de 2012

Um novo começo


Cortando a imensa pradaria que se estendia até o horizonte, uma precária estrada de terra crescia de norte a sul. Ora, a estrada, apesar de simples, possuía um aspecto singularmente belo aos olhos, pois a pradaria era coberta por um baixo gramado muito verde que dançava gentilmente com o vento. Outro motivo que tornava o local tão agradável era o doce cheiro de abóboras do campo que pairava sobre ela, proveniente de uma velha carroça de madeira, carregada por um velho cavalo, que avançava lentamente.
De gentil, a carroça não tinha nada. Era de madeira escura e mal trabalhada, roída por cupins e lar de muitos outros insetos. O teto era esburacado e coberto por rachaduras, não dando dúvidas a qualquer um que olhasse que ela não protegeria nem da mais singela garoa de verão. O cavalo possuía uma pelagem castanha, com manchas brancas no focinho e pelo tronco, descendo-lhe por uma das patas. Apesar de velho, era musculoso e tinha um semblante cheio de vigor, com o pescoço erguido, orgulhoso como se fosse o senhor da estrada.
Sentado em uma bancada, um homem guiava calmamente o cavalo pelas rédeas. Vestia uma camisa cinza com pequenos buracos e rasgos onde as costuras se juntavam, além disso, luvas de couro calçavam-lhe as mãos e um grosso par de botas de couro de vaca. Seu cabelo era escuro e oleoso, parte colada em seu rosto suado e parte descendo até a nuca.
Ele assobiava baixinho, no ritmo de O Mímico de Venyr, enquanto sentia a leve brisa tocar-lhe o rosto. Apesar de uma fraca garoa durante a manhã, dia estava quente e agradável, com poucas nuvens cobrindo o azul do céu e o sol brilhando forte. Agradável até o momento.
Passou por uma placa de madeira, onde uma seta apontava para frente. Nela, estavam escritos os dizeres “Swydia a cinco léguas.”.
Oito léguas? Eltharys vai voltar do seu trono de sombras antes de eu chegar lá. Pensou, irritado. Uma légua era em média, cerca de seis mil metros e, apesar do homem já ter caminhado a pé por muitas léguas a mais, mas estava de saco cheio de dormir na carroça. Precisava de uma garrafa de vinho e uma boa companhia para lhe aquecer a cama.
A menos de um quilometro a frente, aproximadamente quatro homens estavam parados no metro da estrada.
- Que saco. Mais essa agora. – murmurou o homem com uma voz rouca e seca. Então puxou um cantil de água do bolso de sua calça e bebeu até o fim. – Vamos Malhado, se diminuir o passo, não vai ganhar nenhum maçã na próxima parada... – Disse ele ao cavalo com gentileza, soltando um risinho de canto de boca.
Não mostrando qualquer diferença de postura, continuou guiando a carroça pela estrada, olhando para frente como se tivesse tomado por um estranho interesse pelo horizonte. Depois de algum tempo, reconheceu do que se tratavam. Mercenários.
Usavam roupas de lã comum, em tons de marrom, verde e bege, em grande maioria sujas de terra e barro. Todos estavam armados com pelo menos uma espada curta presa à cintura, além de todas as facas e bestas que deveriam estar escondidas. Eram homens de rosto firme e aparentemente implacável, com a pele morena, manchada pelos anos trabalhando sob o sol.
Vou aproveitar o disfarce.
Quando presumiu que já poderiam o ouvir, o homem sentado na carroça começou a cantarolar descontraidamente como um viajante qualquer.
De noite escuto sua linda voz perdida na brisa da noite
Nas sombras eu vejo teus olhos a me observar
E a saudade me castiga como um cruel açoite.
Ooh minha bela senhora que estórias irá me contar?
Eu lhe peço, eu lhe imploro, não fujas de mim
Que com a minha palavra não irei falhar.
Ooh minha bela...
- Ei, pare a carroça! - Ordenou um dos mercenários em voz alta, aproximando-se cautelosamente do homem enquanto os companheiros se agrupavam ao redor em meia lua, fechando a estrada. – Está vindo de onde?
Mercenário era apenas um nome bonito para salteador de estrada e o homem na carroça sabia bem disso.
- Harley Do Norte. Por quê? Vocês são guardas da cidade ou algo assim? – respondeu com um meio sorriso enquanto parava a carroça, soltava as rédeas de Malhado e as enrolava em um pedaço solto de madeira. O mercenário passou a mão no cabo da espada que trazia no cinto e sorriu ao perceber que o homem observava a arma com olhos cobertos de incompreensão.
- Sim, guardas. – disse o mercenário, virando-se para os outros, deixando escapar uma alta gargalhada. Todos os companheiros riram em voz alta, alegremente. Depois se virou novamente para o homem, com um olhar zombeteiro. – Viemos fazer a fiscalização de mercadoria. – completou, colocando a mão sobre o cabo da espada.
O homem pigarreou e passou a mão em seus cabelos, tirando-os do rosto e jogando-os para trás.
- Se querem ver o que estou trazendo, podem ir lá atrás. São apenas abóboras. – disse calmamente, enquanto descia com uma lentidão proposital da carroça.
 Ao ficar de pé, frente a frente com o mercenário, pela primeira vez perceberam que o homem era bastante alto e possuía ombros largos e fortes. De algum modo, apesar de seu rosto comum, seus olhos negros pareciam estranhamente cheios de vida.
Um dos mercenários pareceu intrigado com o homem e o examinou dos pés a cabeça com um olhar incriminador. Possuía um aspecto diferente dos outros, pois era bastante magro e alto, com a pele mais escura que a dos companheiros e sob um par de olhos amendoados, havia uma mancha negra feita de tinta Então, um homem do sul. Em seguida, ele deu um passo a frente e perguntou com uma voz áspera.
- Por acaso eu não te conheço? Qual o teu nome, mercador?
- Brian, Brian Sansyl. – respondeu o homem, com uma educação além do normal.
O mercenário ficou quieto, encarando o homem com um olhar pensativo enquanto passava a mão áspera sobre um pequeno cavanhaque que crescia em seu queixo.
- Já esteve em Darlas? – perguntou.
- Fui criado lá até os meus quinze anos. – respondeu o mercador. Precisava de um escape, já que o mercenário parecia desconfiar de alguma coisa. “Por acaso não te conheço” sempre é usava para driblar a atenção, preparar o terreno para algum jogo de palavras. – O meu tio me levou para Pehir e me ensinou sobre todas as coisas do comércio. Estou indo para Swydia encontra-lo e preparar as coisas para o Festival de Verão.
O mercenário não se deixou enganar com essa historinha. Continuou desconfiado, mas pareceu deixar a suspeita de lado e não perguntou mais nada, o que não era nada bom. Talvez ele tivesse o reconhecido.
O líder dos mercenários se adiantou, sacou a espada sem qualquer floreio e empurrou o homem contra a carroça. Seu rosto mostrava uma expressão raivosa, porém descontraída, de alguém que já fez esse tipo de coisa dezenas de vezes.
- Chega de brincadeira. Dê-nos a bolsa e tudo de valor que tiver com você. – disse ele enquanto enfiava a mão nos bolsos a mostra do homem. Puxou três linros do bolso da frente da calça e disse em voz alta, erguendo-se, tentando mostrar superioridade. Babaca. – Eu sei que você tem bem mais do que isso, então me dá se não quiser que eu corte o seu cabelo sem qualquer cuidado! Herns, corte as amarras do cavalo, vamos levar esse bicho velho também! – ordenou.
Brian enfiou a mão no bolso de trás e puxou mais cinco linros, esticou o braço com a mão aberta, mostrando as pesadas moedas que cintilaram sob a luz do sol. O mercenário arrancou-as da mão do homem e enfiou no próprio bolso.
- Só isso? – disse, enquanto seu rosto debochado transformava-se em uma máscara de raiva. – Um mercador viajando com um punhado de linros? Quer que eu acredite nisso?
- Pode procurar na carroça se quiser. – respondeu Brian, apreensivo. – Eu só tenho abóboras, pode leva-las se quiser.
O mercenário se irritou. Cerrou o punho e acertou um soco bem na boca do estômago do mercador, que se inclinou para frente com dor enquanto sentia o ar deixar seus pulmões. Depois, o agarrou um punhado de cabelos de Brian e puxou, fazendo seus olhos se encontrarem.
- Me dá a merda do dinheiro se não eu arranco um dedo seu pra cada minuto que estou desperdiçando aqui.
Brian tentou se soltar mercenário, mas este, que já segurava o cabelo do mercador, puxou-o para baixo e acertou-lhe uma forte joelhada no rosto. Sangue espirrou para todos os lados, saindo das narinas do homem, que gemeu de dor, agarrando o nariz com as mãos. Quebrado. Cacete, vou acabar com esse inseto.
- Eu quero o dinheiro! – rosnou novamente o mercenário enquanto saliva espirrava de sua boca a cada palavra. – Me dá a porra do seu dedo aqui! – disse, enquanto soltava os cabelos de Brian e agarrava a sua mão com força. Droga, o meu disfarce... chegar na cidade com a cabeça desses otários vai botar todo o plano na lama. Mas não vou deixa-lo arrancar o meu dedo. Merda. Pense, PENSE!
- Está bem! – gritou Brian, desesperado. – Está bem. Eu lhe dou tudo o que tenho, mas, por favor, me poupe. O dinheiro está em um fundo falso dentro da carroça. Eu lhe dou tudo, pode pegar...
- Agora eu vi resultado. Vamos lá atrás ver o que você tanto está trazendo. Se não tiver nada lá, vamos levar a carroça, junto com um ou dois dedos seus. Se não, pode ficar com esse lixo pra você. – Disse, agarrando o braço de Brian e empurrando-o para frente, fazendo-o cair sobre o chão de terra da estrada. Outros dois mercenários o acompanharam, entre eles, o desconfiado, que .
- Ei, Rince, o que eu faço com esse pangaré velho? – perguntou Herm, enquanto tentava, sem sucesso, puxar o cavalo para longe da carroça, segurando em suas rédeas. O cavalo relinchava alto, bufava e puxava o mercenário que tentava, em vão, tomar o controle da situação. – Esse bicho é muito forte!
Rince, esse é o nome do bastardo.
- Da umas porradas nele pra ver se aprende. Vamos, seu merda. Não tenho o dia todo.
Quando chegaram à parte de trás da carroça, o mercador abriu a pequena porteira e deu um passo para o lado, mostrando para os mercenários o que havia lá dentro. Abóboras. Pelo menos duas dezenas delas.
- O seu cavalo é mais forte do que eu imaginava. – disse o líder, rindo, se aproximando da porteira e observando o interior.  – agora, onde está o dinheiro?
- As abóboras estão por cima. Deixa que eu tiro elas... – disse Brian, adiantando-se e subindo na carroça com um pequeno salto. A agilidade do homem pareceu quase incomum, pois seu pouso sobre o assoalho de madeira não emitiu qualquer ruído, nem mesmo o ranger das taboas.
O mercenário que desconfiou de Brian puxou o arco-composto de seu cinto de couro e preparou um dardo. Seus olhos cintilaram ao ver o mercador lá dentro, preso, um alvo fácil para sua arma. Em seu íntimo, o mercador sabia o motivo.
- Anda, cadê? – perguntou Rince, ainda empunhando a espada, colocou uma mão sobre o assoalho da carroça e saltou lá pra dentro. O lugar era pequeno e abafado, com o teto baixo onde mal caberia uma mulher de pé. O cheiro de abóbora era forte e, de certa forma agradável, mas por algum motivo, parecia cobrir ou outro cheiro. Outro odor, proveniente das próprias abóboras.
Brian puxava as abóboras para o lado, abrindo um pequeno espaço. Então, puxou uma chave que estava presa ao cinto e enfiou entre as taboas.
Enquanto isso, Rince andava abaixado pela carroça, tomando cuidado para não pisar nas abóboras, enquanto investigava o chão com um par de olhos espertos, acostumados a procurar dinheiro, que só um mercenário sagaz tem o prazer de possuir. Brian, por sua vez, percebeu o que ele estava fazendo, mas não havia modo que pudesse agir.
- Rince? Pelas três irmãs, o que está fazendo? – perguntou um dos mercenários lá fora, irritado. – Faz esse cara pegar logo o dinheiro, antes que eu suba ai e quebre algum dente dele.
- Shhh. – fez Rince, levando um dedo a boca, pedindo silêncio. Seus olhos rondavam o pequeno rio de abóboras como os olhos de um urubu rondam um animal prestes a morrer. – Tem algo muito errado aqui. Eu já havia percebido antes, mas agora confirmei.
O líder dos mercenários abaixou-se, empurrou algumas abóboras e deu um salto para trás com o que viu. Um par de olhos o encarava em meio às frutas. Olhos sem vida, cujo brilho havia sido levado há bastante tempo. Os olhos pertenciam a uma cabeça sem corpo, com o sangue em seu pescoço já completamente seco e a pele flácida e cinzenta. Por algum motivo, as moscas não haviam comido a cabeça e nem pareciam estar se alojando dentro dela.
- Seu filho de uma cadela! – rosnou Rince, girando o corpo para o mercador, apontando a espada para ele. Brian permaneceu abaixado, com os negros cabelos lisos escondendo seu rosto. – Quem é você? Que merda é essa?
Brian deixou escapar um riso abafado.
- Você já descobriu de quem que era?
Apesar de a cabeça parecer ter sido arrancada do corpo há muito tempo, ainda era reconhecível o rosto jovial de Arthur Lancost, filho de Moray Lancost, conde de Levyzes.
- Por Eltharys, o que está acontecendo aqui? – grunhiu ele, empunhando a espada com as duas mãos pela primeira vez.
Brian, em uma velocidade quase sobrenatural, se levantou do assoalho e avançou na direção de Rince, puxando uma comprida adaga prateada de cabo negro como a noite do meio das taboas. O mercenário se assustou com o movimento, mas foi instintivamente veloz, descrevendo uma meia lua com sua espada.
Quando a lâmina encontrou o corpo do mercador, soltou agudo um som metálico. A adaga cintilou, protegendo-o do golpe. Imediatamente, Brian, com suas mãos cobertas pelo grosso par de luvas que usava, agarrou a lâmina enferrujada da espada, depois segurou o ombro do mercenário e puxou-o para o lado.
A velocidade da ação foi tamanha que Rince não teve tempo de refletir sobre o que estava acontecendo. Quando percebeu, o vento soltou um assobio baixo e uma dor aguda explodiu em suas costas, enquanto sentia o sangue quente escorrer do dardo cravado em sua carne.
- Mercenários deviam aprender a usar armas de melhor qualidade com o dinheiro que ganham roubando mercadores na estrada. – disse Brian com sua voz pacata de sempre, enquanto colocava o pé sobre o peito do mercenário e o empurrava para fora da carroça.
O corpo de Rince desabou sobre o mercenário com a besta de mão.
- Herns! – gritou o mercenário que ainda estava de pé. Em seguida, ergueu a espada acima da cabeça e disparou em direção ao mercador.
O braço de Brian, com a rapidez do bote de uma serpente, atirou sua adaga na direção do oponente. A lâmina brilhou pálida, rasgando o ar, até se encontrar com o pescoço musculoso do mercenário, de onde começou a borbulhar sua seiva avermelhada.
O outro mercenário empurrou o corpo de seu líder para o lado, mas antes que pudesse se levantar, Brian estava na sua frente, segurando o arco da besta com a mão, apontando para longe.
- Então, você me reconhece agora? – perguntou Brian, com um sorriso sarcástico no rosto. O mercenário segurou a besta com mais força e desviou o olhar para as costas de Brian.
O mercador puxou a arma com força, fazendo o mercenário soltá-la sem qualquer dificuldade. Com maestria, usando apenas uma mão, virou a arma na posição de tiro, enquanto com a outra mão, agarrava os dedos do homem. Brian girou, derrubando-o no chão e ficando frente a frente para Herns, que corria em sua direção com a espada em mãos. No mesmo segundo, o corpo de Herns desabou sem vida sobre o chão, com um dardo de madeira entre os olhos.
Brian virou-se para o mercenário, que estava caído sobre o chão e o encarou com seus profundos olhos escuros, que por algum motivo, pareciam não pareciam possuir brilho algum, parecendo tão ou mais sem vida do que os olhos dos mortos em volta dos dois.
O mercenário, assustado, tentou se desvencilhar da mão que o segurava com um puxão, mas o mercador agarrou seu dedo indicador e entortou para cima.
- Seu nome. – ordenou.
- Eu me lembro de você! – disse o mercenário, ignorando a ordem novamente. – Seu bastardo desgraçado. Logo reconheci esses malditos olhos.
Brian soltou o dedo do homem e pisou em seu peito fortemente com sua bota desgastada, prendendo-o ao chão. Eu devia ter me lembrado. Esse inseto estava em Nessyth.
- Desculpe, mas vai encontrar o trono de Eltharys mais cedo. Eu tentei poupa-los, passar despercebido, mas a escolha foi de vocês. – disse Brian, enquanto abaixava lentamente em direção à bota no peito do homem. – Você devia saber que a vida de um mercenário é curta. Toda essa coisa de lutar por ouro, sem qualquer código de conduta. Devia ficar feliz, pois ia acabar morrendo pela mão de seu líder em uma briga qualquer por alguns ulcros. – continuou, enquanto puxava de dentro da bota, uma fina lâmina lisa e simples, do tamanho de um dedo médio.
- Pode me matar, seu verme desprezível! – berrou o mercenário, com raiva. – Me mate com o mesmo olhar frio com o qual matou Lithyan e todos os outros com essas mãos sujas de sangue! Seu desgraçado, assassino maldito! – continuou, sem mover o corpo, sem lutar contra a força que o prendia ao chão. A tinta preta sob seus olhos começou a escorrer quando lágrimas dançaram em seu rosto. – demônio!
O mercador abriu um grande e cínico sorriso, mostrando pela primeira vez como seus dentes eram tortos, crescidos um por cima dos outros. Mas o sorriso pertenceu apenas a seus lábios sem cor, pois o resto de sua face continuou incólume.
- Demônio? – perguntou, ainda com seus lábios mostrando certo deboche. – A esta altura, já sabe que não sou nenhum mercador chamado Brian, certo? Bom, eu sou Qanah’hyr e não se preocupe, o meu nome não é nome de demônio ou qualquer outra criatura do Abismo... Mas isso não quer dizer que não vou te levar pra dar um passeio no inferno.

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