Uma dança para dois.
Para começar e organizar minhas memórias de forma duradoura, uma breve
descrição sobre mim cairia muito bem, pelo menos para deixa-lo a par de quem eu
era antes de me tornar a pessoa da qual todos vocês ouviram falar.
Para início de conversa, eu possuía vários pseudônimos, mais do que
posso me recordar. Alguns esquecidos ao longo do tempo, conhecidos apenas por apenas
um pequeno punhado de pessoas, já outros que eram usados com maior frequência,
por amigos e colegas. É necessário lembra-los que, Sombra ou Espada Negra, não
existia na época, muito menos os nomes mais baixos e chulos, como Ninja Urbano
e alguns outros. Dando nome aos bois, eu era simplesmente Alexandre Oppenheimer. Não tinha qualquer
título ou sobrenome majestoso e imponente como O Grande, mas era chamado pela
alcunha simpática de Alex. Assim como todos os garotos da minha idade com esse
nome.
Além de tritanopia, eu possuía depressão, tanto sazonal quanto endógena.
Resultados da Síndrome de Peter Pan que desenvolvi alguns anos antes do início
dessa história. Graças a isso, pode ser que algumas passagens do livro que tem em
mãos tendam a inclinarem para um lado um pouco melancólico, talvez até
dramático ou lírico além do necessário.
Vivia em um bairro comum de classe média/baixa, em um condomínio de
casas que poderia ser refletido metaforicamente como um pequeno Oasis no meio
do subúrbio. Rodeado com muros altos, com fios elétricos em seu topo, o lugar
era bastante calmo e pacato, com crianças brincando na rua a qualquer hora do
dia, ou da noite, sem qualquer perigo eminente que brincadeiras fora de casa
geralmente poderiam proporcionar. Era cheio de pequenas aglomerações de plantas
bem cultivadas e podadas, a grama crescia verde e as árvores eram altas e
majestosas.
Lá, eu passei esse fatídico ano de minha vida, lá, naquele pequeno e
agradável condomínio, começou a experiência a qual todos vocês estão
familiarizados, apesar de não souberem da missa um terço. Lá eu criei coragem
para fazer o que ninguém realmente havia feito, lá eu consegui inflamar o
coração de alguns homens a seguirem um caminho obscuro, sem nada a temer. Lá, a
Liga Das Sombras foi criada e lá, naquele local estranhamente contraditório com
o que nos tornamos ou fomos forçados a nos tornar, minhas memórias começam se
tornarem interessantes e a minha monótona vida de pequeno adulto começou a
tomar forma.
Lá, como já estão familiarizados, percebi que a minha verdadeira vocação
não residia em trabalhar em um escritório, com pessoas menos inteligentes do
que eu me dando ordens e levantando a voz comigo simplesmente por estarem onde
estavam por serem mais velhos. A minha verdadeira vocação se mantinha em um
estranho poço de desejos, se mantinha sob uma forte chuva de inverno, se
mantinha nas cartas de tarô de uma velha louca.
Foram dias turbulentos, não vou mentir. Eram cheios de temores regulares
sobre o dia seguinte, se eu ainda estaria vivo, se eu poderia encontra-la de
novo... mas como já sabem, as coisas demoraram para dar realmente errado. Eu
sempre fui um sujeito sortudo, isso é um fato, as coisas simplesmente davam
certo para mim, independente dos caminhos e meios que eu utilizasse e esse foi
o maior motivo do meu fracasso. Eu achava que poderia fazer qualquer coisa, eu
me agarrava as mais vãs esperanças que poderiam me salvar de uma queda, achando
que no final das contas, daria um jeito em qualquer problema que aparecesse. Eu
era insensato, eu era intolerante, eu não estava preparado para enfrentar
problemas tão grandes, sendo alguém tão pequeno. O resultado foi o qual já
estão acostumados a ouvir, fui traído e derrubado.
As razões de eu ter me tornado o que me tornei são simples, claras como
um dia de verão. Eu me moldei em tristeza, me moldei em um antro de melancolia,
sofrendo em silêncio, levando uma vida que não gostaria. Todos possuem o
direito de perder a sanidade depois de um tempo. Todos devem se esquecer do que
é dito para nós, do que é certo e o que é errado e seguir os próprios
instintos, seus próprios ideais.
O resultado disso, como é de se supor, são feridas. Cicatrizes profundas
e, algumas vezes, grandes demais para cicatrizarem sozinhas, mas cicatrizes são
provas de que o medo nos deixou. Cicatrizes mostram o que fizemos um dia, o
quão corajoso fomos, tentando fazer coisas às quais não estamos acostumados, às
quais é necessária uma pequena quantidade de impulso momentâneo e, talvez,
idiotice. Mas continuam sendo marcas de coragem. Continuam simbolizando
eternamente um momento em que você tentou algo que não conseguiria. Que havia
dúvidas sobre o seu sucesso.
“Flertar com a morte.” Era uma frase comum na Liga Das Sombras. Dizíamos
quase como um hino, uma frase própria que apenas nós entendíamos o significado
mais profundo... mas agora eu entendo o que ela quer dizer de verdade. Víamos
essa expressão ímpar como se a morte fosse algo que deveria ser cortejado,
acolhido de braços abertos, mas nenhum de nós queria realmente que ela batesse
à porta. Cantávamos aos ventos que flertávamos com a morte, que trocávamos
olhares, carícias e até beijos, mas nunca a levávamos para a cama. Como se ela
fosse uma amante antiga, uma garota que não queremos perder.
É verdade, para fazer o que fazíamos na Liga Das Sombras, você não podia
temer a morte e esse era o nosso valor mais profundo, mais ligado às nossas
vidas. Mas nos esquecemos de uma coisa, durante o doce passar do tempo, nos
esquecemos de que não é a morte que devemos temer. É o medo que devemos temer.
Você precisa agir como se sentisse o gélido e pútrido hálito da morte em sua
seu encalço e seus olhos negros e sem brilho, sempre vigilantes, observando
cada passo. Você precisa ter coragem de se aproximar e chama-la para sair. Se
aproximar e lhe dizer o quanto ela é linda. Faze-la acreditar que é linda e
que, apesar de tudo, ela não pode te machucar. Não importa o quanto a ame. Não
importa o quanto ela te use e depois vá embora.
Eu amei sofri, lutei e me reergui, mas no final das contas, tudo não
passou de um pequeno evento na vida da maioria, apesar deste pequeno evento ter
sido como uma boia pra mim. Para que eu não me afogasse em mágoas.
A música realmente é uma paixão complicada, pois se você não lhe dá a
atenção que lhe é merecida, não importa quantas vezes as cordas do instrumento
a chame, ela não virá. Se, por ironia do destino, ela resolver dar as caras,
não será de boa vontade e o seu semblante refletirá apenas uma pequena fração
da beleza que um dia já teve. Descobri isso da pior forma possível.
O vento assobiava pela fresta aberta da janela enquanto grossas gotas de
chuva chocavam-se fortemente com o vidro embaçado. O céu nublado, coberto por
um manto de nuvens cinzentas, era rasgado constantemente por raios
esbranquiçados que serpenteavam de um lado para o outro. Enquanto isso, eu
tentava, inutilmente, retirar algum som agradável das cordas metálicas de um
empoeirado violão negro e brilhante. Havia se passado muito tempo desde a
ultima melodia que meus dedos deram vida, por isso, eles escorregavam e doiam enquanto
eu os forçava em uma singular dança com uma companheira orgulhosa demais para
ser conduzida.
Os acordes lamentavam o meu desempenho e as cordas clamavam por um
dedilhado suave, mas não fui capaz de lhes conceder tal desejo. Irritado,
resmunguei qualquer coisa com uma voz quase gutural e guardei o violão em sua
capa de couro escuro com certa violência. Fechei o zíper e o larguei em um
canto, encostado à parede enquanto murmurava palavrões. Havia tentado por quase
duas horas e as cordas não omitiram nada mais do que notas sortidas, que
sibilaram fracas pelo quarto e foram abafadas pelos trovões lá fora.
Não vou mentir. No minuto seguinte em que o pequeno ataque raivoso
passou, percebi o quanto estava triste, pedindo perdão às cordas e ao
instrumento, aos meus dedos e à palheta que usava. Pedindo perdão a musica e
prometendo voltar a treinar. Mas, pedir perdão, assim como em qualquer outro
tipo de relacionamento, nunca resolve nada.
Em meu íntimo, senti uma pequena angústia e uma imensa vontade de liberá-la.
De chorar e deixar as lágrimas rolarem pelo meu rosto, pois a minha mais pura
paixão havia ido embora e eu sentia medo de nunca mais a encontrar. O homem é
uma criatura esquisita, só dá valor às coisas depois que as perde e esse é o
principal motivo de perdê-las.
Triste, sentindo o vazio que a música havia deixado em mim, lembrei-me
do que tanto estava aguardando. O porquê de eu ter tentado, depois de tanto
tempo, tocar violão. Eu estava apenas tentando fazer o tempo passar mais
depressa, pois aguardava ansiosamente uma resposta e, por isso, passei os olhos
pelo quarto a procura do meu celular.
Era um aposento comum, digno de alguém que acabara de deixar a
adolescência. Uma cama box em um canto, com os lençóis ainda desarrumados e o
travesseiro caído sobre o chão, uma pequena mesa de escrivaninha onde repousava
um notebook ainda fechado, uma televisão e um videogame, pequenas pilhas de
quadrinhos e livros, uma mochila preta, com alguns bottons e chaveiros, além de
tênis e roupas sujas espalhadas pelos cantos, em cima de qualquer objeto que
pudesse os sustentar. Encontrei-o! Apanhei o celular de cima da cama e apertei
alguns botões, com uma pequena silhueta de um sorriso em meu rosto. Logo a
silhueta desapareceu.
“Ela ainda não me respondeu…” pensei, com um pequeno frio subindo pela
espinha. Está certo, isso era algo comum. Que eu lhe mandava meia dúzia de
mensagens e ela demorava séculos para responder, quando o fazia. Mesmo assim,
eu esperava ansiosamente e é provável que ela saiba disso, talvez esse fosse o
principal motivo dessa demora.
Amargurado, apanhei o notebook sobre a mesa e joguei-o na cama.
Deitei-me sobre as cobertas desarrumadas, levantei o seu monitor e acessei o
facebook.
“Não sei quem curtiu a sua foto” dizia um pequeno letreiro azulado no
canto da página. A foto era de meio ano atrás, quando o meu cabelo era comprido
e claro, alisado e arrepiado da forma que a moda ditava. Não havia pelos em meu
rosto fino e os meus olhos cintilavam vivos e esmeraldados. Aquele já não era
mais o que eu sou a algum tempo. O meu cabelo estava ligeiramente mais curto,
uma pequena barba crescia sob o meu rosto, cujo estava bastante fundo e magro.
Apenas os olhos eram os mesmos, apesar do olhar não ser.
Palavras são fáceis de serem pronunciadas e mais fácil ainda de serem
ditas à brisa, mas podem desaparecer no mais leve vendaval ou ao menor sinal de
tempestade. Já o olhar, realmente dá direção aos sentimentos como um maestro
rege a música e, como uma janela para os pensamentos mais profundos, ele
espelha o que mais queremos dizer para quem possuir a sagacidade de procurar no
lugar certo.
Mesmo sem um espelho por perto, eu sabia. Meus olhos, ao contrário dos
olhos cheios de vida na foto, pelo menos naquele dia chuvoso, no meio da
semana, estavam sombrios, abertos apenas pelo leve capricho de continuar
acordado. Apesar de sua cor verde-musgo, uma cor relativamente clara, eles não
revelavam qualquer sombra de brilho, revelando claramente ao mundo um estranho
semblante melancólico ou, pelo menos, deprimido. Já os seus contornos, eram
olheiras escuras, que o torneavam como uma moldura feia que revelava o cansaço
de passar as noites em claro.
“Ei!” dizia uma pequena janelinha que piscava incessantemente na tela do
notebook. Era Ana Luiza, uma garota que sempre havia tido uma pequena queda por
mim, apesar de nunca ter dito isso abertamente. Às vezes, eu simplesmente sabia
dessas coisas, apesar de não serem muito comuns.
Era uma garota bonita, de cabelos negros, mas eu sentia uma estranha
vontade de lhe cortar. Ela não me interessava de forma alguma e eu nunca
descobri realmente o motivo. Geralmente era assim comigo, as garotas que
estavam dispostas a serem minhas, a se entregarem completamente a mim, nunca me
interessavam. Eu as achava um pouco... atiradas demais.
Assim sendo, respondi rapidamente “Oi Ana! Desculpe a demora, estava
arrumando o quarto, mas já tenho que sair. Depois nos falamos.”.
Fechei a conversa, mudei o meu estado para “Offline” e decidi passear
pela barra de atualizações. Várias fotos de pessoas que conheço só de vista,
fazendo biquinho com a boca e indiretas escritas com o português mais porco
possível. Todos os dias eu lembrava a mim mesmo que Facebook só me fazia passar
raiva, mas mesmo assim, continuava acessando-o continuamente, como se estivesse
em um circulo infinito. Algumas postagens evangélicas e outras sobre animês e
fechei o site. “Por que diabos eu teimo em abrir essa merda?” eu me indagava
inutilmente.
Não era um sujeito realmente popular por lá, como não era um sujeito
realmente popular fora de lá. Apesar de conhecer muitas pessoas e muitas
pessoas me conhecerem, eu nunca me dei ao trabalho de adicioná-las no meu
perfil. Eu sabia que nunca conversaria realmente com elas e só passaria raiva
vendo o que elas postariam. Eles mantinham a mesma distância de mim, ao que me
parece, pois fazia um tempo relativamente longo que eu dava de cara o tempo
todo com esses conhecidos e nada acontecia.
Eu realmente gostava de usar a internet por uma série de fatores. O
primeiro, é que não importa o horário, o dia ou o que quer que esteja
acontecendo, você pode interagir com milhões de pessoas de qualquer lugar do
mundo, mesmo sem sair da sua cama. Pode estar ao lado da sua namorada no meio
da noite, debaixo de chuva, sem precisar jogar pedrinhas na janela dela ou
temer um pai enfurecido e ciumento. Em segundo lugar, você possui ao seu
dispor, uma infinidade de informações a um clique de distância, sob a forma de
bytes e pixels, mostrando as várias formas de ver o mundo, sejam essas
informações verídicas ou não. Centenas de textos e, com um pouco de paciência,
você pode conhecer o que quiser ou lugar que tiver vontade, ler os livros que
te interessarem e ver os filmes que sempre quis. O mundo estava diferente desde
a minha infância, tudo era muito mais acessível e, talvez por toda essa
superabundância de informações e de pessoas ali, tão próximas, pareciam tão
mais distantes.
Peguei o celular. Nada.
Suspirei e baixei o monitor do notebook. Estava entediado, como se isso fosse
novidade, por isso puxei uma revista em quadrinhos e comecei a folhear
lentamente as páginas, vendo apenas os seus desenhos. Já havia lido todas, mas
ainda me sentia entusiasmado quando via os socos e pontapés ou lia as frases
prontas.
De repente, o meu celular vibrou sobre a mesa e soltei uma exclamação ao
saltar com uma agilidade quase felina em sua direção. Estava esperando uma
resposta já havia mais de três horas, por isso, agarrei o objeto com força, mas
logo me decepcionei. Era uma mensagem da operadora, me dando bônus para
ligações para telefones locais. “Saco.” pensei e joguei o celular sobre a cama,
sem qualquer cuidado.
Irritado, abri a porta e sai do quarto. Eram cinco da tarde, mas o
corredor estava escuro como se fosse noite fechada. Segurei no corrimão e desci
vagarosamente as escadas em sua extremidade, com o corpo encurvado para frente,
como se carregasse o mundo sobre os ombros.
A sala era pequena, já que se tratava de uma pequena casa de condomínio,
mas mesmo assim, era espaçosa e ampla. Lá, minha irmã assistia televisão,
deitada sobre o sofá de forma desleixada, com os pés descalços sobre as
almofadas. Ela era uma garota grande, apesar de seus dez anos. Com olhos
amendoados e cabelos compridos e castanhos. Já a sua pele era queimada de sol,
como toda pele de criança deveria ser.
-
O que você está vendo? – perguntei, fingindo um pouco de interesse.
Sempre tentava quebrar o gelo do convívio social obrigatório, apesar de não ser
muito bom nisso.
-
Série. – respondeu ela, com menos interesse ainda.
-
Claro. – respondi. Irmãos geralmente possuem vários tipos de acordos
silenciosos para melhorar o convívio. No nosso caso, tais acordos englobavam
uma vasta ramificação de possibilidades e ambos entendíamos isso perfeitamente.
“Nunca se meta nas minhas coisas.” É o nosso acordo mais antigo e mais
importante e quebra-lo é a forma mais terrível de começar uma pequena guerra de
interesses.
A série era sobre vampiros, como era comum na época. Vampiros estavam na
moda já fazia algum tempo e eu precisava me recordar constantemente de que as
diferenças entre tais criaturas da noite com os clássicos, como Drácula de Bran
Stoker. Para começar, o Drácula chupava sangue, já os vampiros da época...
-
Não era pra você estar dormindo? – soou uma voz estridente às minhas
costas, preenchendo os quatro cantos da sala. Era a minha mãe e nem precisava
ouvir pra saber o que ela diria em seguida, exclamando efusiva como uma gralha.
– Você fica acordado a noite inteira, tem que estar descansado pra trabalhar
bem! – sermões. Eles vinham aos montes desde que comecei a trabalhar, algumas
vezes devido ao meu eterno problema com o sono. Algumas vezes devido a minha
depressão.
-
Tá bom, mãe. Já vou dormir, só vim beber alguma coisa. – era a minha
resposta padrão para todas as suas indagações.
-
Vê se dorme mesmo. – resmungou ela pela ultima vez e virou de costas,
indo em direção à cozinha.
Ela se chamava Estela, o que me lembrava de uma amiga. Era branca, de
olhos negros e cabelo escuro, apesar de alguns fios prateados reluzirem em
contraste com a luz. Ela não era uma mulher com a idade muito avançada, o que
era fácil perceber pelo seu rosto jovial, embora eu nunca tenha decorado de
verdade quantos anos qualquer um dos meus pais tivesse.
A janela estava aberta. Lá fora, as pessoas andavam de um lado para o outro, na pacata rua cercada de muros altos e grades eletrificadas, mas eu duvidava que isso pudesse para-los, sabe? Eles sempre estavam por lá, me procurando. Olhei lá pra fora, com cautela e para os dois lados, e só então fechei a cortina.
A janela estava aberta. Lá fora, as pessoas andavam de um lado para o outro, na pacata rua cercada de muros altos e grades eletrificadas, mas eu duvidava que isso pudesse para-los, sabe? Eles sempre estavam por lá, me procurando. Olhei lá pra fora, com cautela e para os dois lados, e só então fechei a cortina.
Fui à cozinha, abri a geladeira e bebi um pouco de água em uma garrafa
do próprio gargalo. O líquido quente desceu pela minha garganta e meu rosto se
contorceu como se eu sentisse dor. Agua quente ninguém merece.
-
Você ainda não se trocou? – perguntou a minha mãe novamente. Ela lavava
a louça freneticamente, de pé, com o corpo inclinado sobre a pia.
Eu nunca gostei realmente de falar com as pessoas quando o assunto não
me era interessante e, naquele momento, a roupa que eu usava não era a minha
escolha preferida para uma conversa. Não, eu não havia me trocado. Vestia uma
calça preta desbotada de moletom e uma camiseta branca simples, sem desenhos. O
único adorno em mim era a minha corrente em torno do pescoço, onde na ponta
repousava o Um Anel ou uma cópia barata dele. Seu fecho havia se quebrado há
quatro anos e por isso eu o prendi e nunca mais o tirei. Ele já estava até
prateado, pois a tinta que lhe havia dado a cor dourada outrora saiu com tantos
banhos juntos a mim.
-
Quando for tomar banho, eu me troco. – respondi calmamente, mostrando
toda a minha vontade de continuar com aquilo.
-
Então vá tomar banho, vou preparar algo pra você comer enquanto isso,
tá? – É verdade que a minha mãe era uma mulher briguenta e cheia de birra, que
se irritava facilmente e se incomodava muito com muito pouco, mas me amava e
isso eu não posso negar. Sempre cuidou de mim como se eu tivesse cinco anos e entenda,
eu adorava isso.
-
Tá. – respondi, tentando terminar a conversa ali, mas me senti mal
achando ter sido grosso demais, então continuei. – Hoje o trabalho vai ser
puxado, chegou meia dúzia de computadores lá na empresa.
Ela me olhou e depois voltou os olhos para a louça enquanto esfregava um
copo.
-
Isso é bom, assim você tem trabalho e eles não te mandam embora. – Ela
morria de medo de eu ficar desempregado. – além do mais, pelo menos
trabalhando, o tempo passa rápido.
Isso nunca foi verdade para mim, apesar de ser quase um consenso geral.
Nunca gostei realmente de trabalhar e sempre preferi não fazer nada a ficar
quebrando a cabeça. Eu podia passar horas sem fazer nada, pois o meu corpo
estaria ali, parado, mas a minha mente estaria muito longe.
-
Sim. – menti, enquanto me virava e saia da cozinha.
Realmente não sabia o que fazer naquele dia. Estava deprimido demais e
não sentia ânimo com qualquer coisa que fosse. Mesmo as coisas que eu gostava
não me davam o prazer que deveriam dar, então eu caminhava pela casa como um
fantasma, sem motivo definido, sem qualquer propósito.
Subi para o quarto e me tranquei lá dentro. Por algum motivo, me peguei
pensando nela. Será que estava tudo bem? Será que havia acontecido alguma coisa
e ela não podia me responder? Sempre pensei nas possibilidades mais trágicas
possíveis, mas no meu íntimo, eu sabia que não havia nada de errado. Ela era
assim, fazia eu a perseguir como um cachorrinho de rua persegue um mendigo que
lhe dá um pedaço de pão. Era uma garota complicada, difícil de entender, inteligente,
furtiva e talvez fossem essas coisas que mais me fascinava, além daqueles olhos
sonhadores enxergando ao longe, aquela pele pálida como de um fantasma, aquele
cabelo avermelhado, ardendo como fogo...
Já estava pensando nela novamente. Cortei a linha de raciocínio
propositalmente, pois havia coisas mais importantes com o que me preocupar,
como... o celular vibrando sobre a cama. Apanhei-o rapidamente. Era uma
mensagem dela. Imediatamente, um sorriso cresceu em meu rosto da forma mais
pura possível.
“Desculpe a demora, estava jogando. Está tudo combinado para amanhã?
Nove horas mesmo?”
Rapidamente comecei a digitar a resposta, com medo de que ela já não
estivesse com o celular próximo quando recebesse.
“Sim, nove horas no terminal de ônibus, certo? Estarei te esperando, mas
mantenho contato.” Enviei.
Estava quase saltitando de alegria. A possibilidade de vê-la na amanhã
seguinte era grande e isso já tornava o meu dia menos cinzento. Eu não dormiria
naquele próximo dia, verdade, pois sairia do trabalho às seis horas da manhã e
iria para casa apenas me trocar. Estaria cansado como nunca, mas isso não
importava. Eu parecia um idiota apaixonado. Como um garoto de doze anos que
pela primeira vez na vida teve uma garota entre os braços e não ligava para
nada se pudesse vê-la novamente. Sentia-me como um personagem da Disney.
Um pouco mais animado, decidi ler alguma coisa. Peguei um livro e abri-o
onde o marcador mostrava que eu havia parado.
Fora a música, a minha outra paixão incondicional, era por histórias.
Livros e mais livros pelo quarto, contando dezenas de histórias épicas,
fantasiosas, esplêndidas e magníficas. Em centenas de páginas e algumas vezes,
mais de mil, eu me perdia em mundos que não existiam, conhecia pessoas que
nunca nasceram e vivia aventuras que nunca aconteceram. Por algum motivo, essa
fuga do mundo linear em que eu vivia, era terrivelmente prazerosa, pois as
preocupações humanas eram deixadas de lado, para viver outras vidas em outras
terras. Assim, já tive vários nomes, mais do que posso me recordar, já matei
mais pessoas do que posso contar e já caminhei por lugares que não me atrevo a tentar
relembrar. Já salvei donzelas em castelos, atravessei o inferno por um amor
incondicional, enfrentei dragões em busca de princesas e roubei rainhas de suas
torres majestosas. Sim, vivenciei mais amores do que Shakespeare se atreveu a
escrever e amei cada mulher em cada vida minha como se fosse única, da forma
mais cristalina e honesta.
Mas, por algum motivo, eu me sentia ainda mais próximo dos quadrinhos. O
motivo é simples e até meio óbvio, os heróis, apesar de serem homens
fantasiados, com poderes ou não, lutadores ou não, viviam em um mundo mais
próximo do meu do que qualquer cavaleiro de livros de fantasia poderia viver, e
isso me fazia mergulhar ainda mais em suas aventuras. Apesar de tudo, os meus
heróis preferidos sempre foram os que não possuíam poderes ou os que não iam
muito além da capacidade humana. Não, nunca senti que eles poderiam realmente
ser reais, afinal, um tiro no peito e tudo pode estar acabado. Seres humanos
não foram feitos para se aventurarem e eu estava ciente disso, por isso sentia
um enorme peso. Queria tanto que tudo aquilo fosse real. Mas não se preocupe,
eu não era um louco e, apesar da minha imensa vontade de me vestir e sair na
calada da noite dando bordoada em bandidos, eu não fazia isso. A Liga Das
Sombras ainda não existia e nem o Espada Sombria.
Quando me dei conta de que havia perdido a noção do tempo, olhei as
horas no relógio. Já passava das oito da noite e eu precisava tomar banho para
ir trabalhar. Fechei o livro, peguei uma trouxa de roupas no guarda-roupa e fui
para o banheiro.
Liguei o chuveiro e deixei a água cair em meu pé, enquanto eu me
esticava de longe, tentando não molhar o resto do corpo. A água estava fria,
então esperei alguns segundos até ela esquentar e finalmente criei coragem de
me molhar por completo. Deixei a água escorrer pelas minhas costas, nuca e
ombros enquanto sentia o meu corpo esquentar e o banheiro ficar cheio de vapor,
como uma névoa repentina. Finalmente relaxei e comecei a me ensaboar.
Comecei a refletir sobre os problemas no trabalho. Aquela noite seria
puxada e eu não estava com um pingo de vontade de trabalhar. Percebi que a
pequena alegria que a mensagem havia me passado, rapidamente havia se
transformado em sombras novamente e eu me sentia deprimido, como sempre. Iria
receber meu salário em breve, fazer uma tatuagem e comprar vários gibis e
livros, mas isso não me animava. Na verdade, isso e nada pra mim, eram as
mesmas coisas no momento. Talvez eu fosse um sujeito muito ligado ao momento,
na época, e essa falta de vontade de fazer qualquer coisa que seja, tornava
tudo mais escuro. As coisas podiam me deixar feliz, mas algum tempo depois, eu
já não me sentia tão bem assim. Talvez a falta de mais mensagens dela houvesse
me deixado assim, talvez os problemas no trabalho houvessem me deixado assim,
talvez a solidão houvesse me deixado assim.
De alguma forma, eu me sentia tão só quanto jamais me senti. Como se não
estivesse preparado para uma vida cheia de responsabilidades e ninguém para me
apoiar, talvez tudo não passasse de uma estranha sensação de solidão, apesar de
ter algumas pessoas ao redor, faltava alguma coisa.
É como dizem, solidão é estar rodeado de pessoas, mas sentir falta de
apenas uma.
Ensaboei o cabelo com shampoo e deixei a água escorrer pela minha cabeça
enquanto a esfregava com a ponta dos dedos.
Talvez eu comprasse uma katana. Não que eu realmente fosse usa-la ou
algo do tipo, mas desde criança eu sonhava em ter uma espada sobre a minha mesa.
Poderia tirar fotos com ela e parecer um idiota completo, poderia ameaçar as pessoas
(de brincadeira) e poderia falar “Eu tenho uma katana.” Na verdade, talvez esse
fosse o único propósito de eu comprar uma espada nos tempos atuais, pois nem de
enfeite serviria, já que ninguém entrava no meu quarto.
Logo a ideia da katana desapareceu da minha cabeça quando pensei no que
a garota que eu tanto pensava diria se eu comprasse uma. Pensar nela era
diferente do que pensar nas outras garotas. Os sentimentos podiam variar
dependendo do meu estado temperamental e eu podia ficar mais triste do que o
normal ou realmente me animar um pouco para a vida.
O que será que ela está fazendo agora? Pensei, enquanto o sabão do meu
cabelo escorria. Será que está pensando em mim ou será que está com outra
garota? Eu nunca poderia saber, ela era tão inconstante quanto o vento e não
vou mentir, isso era o que mais me atraia nela, apesar de todas as coisas em
comum que tínhamos.
Eu era um garoto jovem, ora. Tinha dezenove anos e, como todo sujeito
nessa idade, pensava em coisas esquisitas. Logo comecei a pensar no quanto
sentia sua falta e, no momento seguinte, a imaginar ela ali comigo, e como
seria se eu conseguisse, pela primeira vez, ficar sozinho de verdade com ela. Seu
corpo lindo, perfeito aos meus olhos, magra, com a pele lisa e quente, livre de
imperfeições, quadris bem torneados e seios grandes e fartos. Apesar de eu
nunca tê-la visto nua realmente, algo me dizia que era encantadora. Eu a
desejava muito... Todas as noites...
Sempre fui um sujeito carente desse tipo de coisa, então me sentia
estranhamente propenso a pensar nessas coisas, apesar de não fazer nada além de
pensar, na maioria das vezes. E aquela garota realmente mexia comigo. O modo
como eu sentia vontade de beijá-la, como a puxava para junto do meu corpo... o modo
como ela me tocava... O modo como eu queria que ela me tocasse... Coloquei a
mão na parede, apoiando-me.
Quando dei por mim, todo o amor que eu queria dar a ela estava
escorrendo pelo ralo junto à água.
Minha respiração arfava e o meu braço estava cansado, sentia o meu rosto
quente enquanto a água descia pelo meu corpo magro, mas estava me sentindo
muito bem. Precisava me lembrar de agradecê-la por isso.
Sai do banho, enxuguei-me com uma toalha e vesti a roupa que usaria para
trabalhar. A brincadeira no banho me deixou um pouco mais relaxado, então
tentei me concentrar em como faria o serviço naquela noite. Joguei o cabelo
para trás, ainda molhado e, vestido, sai do banheiro.
“E ae.” Dizia uma janelinha piscando na tela logo que liguei o notebook.
Era o Lucas, um velho amigo de escola.
“fala ae, gordão!” sim, eu o chamava de gordão, apesar dele não ser
nenhum obeso. Era um modo carinhoso de mostrar afeição e proximidade, pelo
menos entre os homens. Você só é sabe se é próximo de alguém quando o xinga e
ele não se sente realmente insultado.
“Já assistiu o novo filme do Batman?”
“Não, vou amanhã. Nem dormir eu vou.” E era verdade.
“Putz, estou mega ansioso. Vai com a Laura?”
“Sim, vou encontrar ela e vamos passear e tal.” Sim, o nome da garota é
Laura.
“Vish, vai rolar uns beijos ou vai assistir o filme? hahaha”
“Batman é Batman, meu caro amigo hahaha” respondi. Claro que eu esperava
conseguir arrancar uns beijos daqueles lábios avermelhados, mas precisava
manter o meu posto de fã.
Não estava animado para conversar, isso era verdade, então decidi cortar
a conversa no meio após alguns minutos de falação. Sentia os efeitos da
depressão retornando, graças aquele dia chuvoso e frio.
Você deve estar se perguntando o motivo de eu sair nove horas da manhã
de casa. Estar se perguntando se eu não fazia faculdade de manhã ou qualquer
outra coisa desse estranho rito social. Não, eu não fazia faculdade mais, pois
havia trancado. Motivos para isso? Eu pretendia prestar pública no final do ano
e não tenho mais nada a declarar quanto a isso.
Mas você podia ir mais tarde, não? Deve ser outra pergunta na sua cabeça
e eu posso responder facilmente com uma só frase. “Quanto mais tempo se passa
com a pessoa que se gosta, mais feliz se fica.” Enfim, eu queria encontrar a
garota que amava o mais cedo possível para passar o máximo de tempo possível ao
lado dela. Se você nunca amou alguém, não espero que entenda.
-
Já passava das dez e meia quando sai de casa. A noite estava fria e o horizonte
avermelhado, graças à poluição. Já a chuva que antes caia, havia diminuído
gradativamente até àquela hora e, no momento, não passava de uma fina garoa que
molhava a minha barba. Eu andava calmamente, enquanto soltava nuvenzinhas de ar
quente pela boca, vestindo uma grossa jaqueta preta de couro, um cachecol
branco e preto enrolado em torno do pescoço e uma boina, também preta, sobre a
cabeça. No fone de ouvido, tocavam musicas melancólicas, pesadas, para entrar
no clima daquela noite úmida e de aspecto sombrio.
Saindo do
condomínio em que morava, o porteiro abriu o portão para mim e me desejou boa
noite. Sempre gostei dos porteiros e eles sempre pareceram gostar de mim,
talvez por eu sempre tiver sido educado com eles e por ser ter sido um bom
sujeito durante grande parte da minha vida. Não só com os porteiros, mas as
pessoas, em um geral, sempre achavam a minha companhia agradável ou fingiam
isso muito bem.
- Boa noite,
Alex. Bom trabalho pra você. – disse ele, sorrindo, enquanto eu passava por
ele.
- Boa noite,
bom serviço. – respondi, retribuindo o sorriso. Eu sempre fui muito educado com
essas pessoas não tão próximas a mim, isso é verdade.
Caminhei pela
rua mal iluminada do meu condomínio enquanto a chuva encharcava o meu rosto.
Graças a ela, não havia visto uma alma viva até o momento, fora o porteiro, e
muito menos os cachorros vira-latas que sempre me seguiam naquele horário, mas eu sabia que Eles estavam lá, em algum lugar. Para mim, eram como sombras errantes, caminhantes negros, que andavam de um lado para o outro, com seus olhos, sempre vigilantes, caçando-me. Por isso, sempre caminhei com o passo apressado, as vezes chegando até a arfar em poucos minutos.
Pisei em uma poça e senti a água gelada entrar em meu all-star e molhar a meia. “merda!” resmunguei enquanto continuava andando como se nada tivesse acontecido.
Pisei em uma poça e senti a água gelada entrar em meu all-star e molhar a meia. “merda!” resmunguei enquanto continuava andando como se nada tivesse acontecido.
A noite estava
calma e, apesar do frio e da chuva, logo comecei a ver algumas pessoas
caminhando apressadas, o que eu não sabia se me dava alívio ou me deixava mais preocupado. Mulheres com toucas, protegendo seus cabelos alisados e
homens despreocupados, saindo do trabalho com roupas molhadas coladas ao corpo.
O vento gélido soprava forte, mas eu não estava realmente preocupado com isso,
nunca fui de ficar preocupado com coisas assim.
Senti o celular
vibrando em meu bolso e me apressei para apanha-lo. Era uma mensagem da Laura.
“Vou dormir,
bom trabalho. Beijos e doces sonhos. Eu te amo.”
Passei o dedo no
visor para tirar as gotas de chuva que haviam caído sobre ela, espalhando ainda
mais a água, e respondi. “Boa noite, sonhe comigo, e eu também te amo.” Sim,
essas pequenas coisas me deixavam muito feliz, pois de uma forma ou de outra,
mostravam não que ela se importava, mas que havia se lembrado de mim naquele momento.
Agora, um pouco
mais animado, continuei o meu caminho até a estação de trem, enquanto a chuva
encharcava a minha barba.
Era um local mal cuidado, com grades cobertas por ferrugem e bancos quebrados,
espalhados por toda sua extensão. O lugar onde as pessoas trabalhavam para
garantir “todo o conforto e segurança dos usuários” era de madeira velha,
pintada de vermelho com tinta barata que já descascava quase que por completo,
e vez ou outra era frequentado por roedores, aqueles mesmo, de aspecto não
muito higiênico.
Passei pela
catraca, evitando uma grande sombra que crescia em um canto, e dei de cara com os dois guardas que ficavam lá à noite. Uma mulher e
um homem. Não lhes desejei boa noite e nem nada disso, pois os via todas as
noites e nunca pareceram preocupados comigo ou com qualquer outro que passasse
por ali. Estavam muito ocupados conversando sobre seus assuntos
importantíssimos com o vasto intelecto que possuíam para estar em um cargo tão
alto, honrando seu salário milionário. Olhei pela extensão do local, procurando sinais de qualquer pessoa que pudesse representar uma ameaça, mas não encontrei nada de anormal.
Andei pela
estação a procura de um banco que não estivesse molhado, mas não encontrei
nenhum. Emburrado, passei a mão sobre um e empurrei a água para o lado, tirando
o excesso. Então me sentei, abri a mochila e puxei de dentro dela um gibi que
havia guardado para o momento.
Alguns segundos
depois, uma dezena de vozes irrompeu em meio ao silêncio da madrugada, como uma
explosão, e se aproximou rapidamente. Um grupo de pessoas caminhava alegremente
pela estação, papeando sobre histórias mundanas e rindo em voz alta, para que
todos soubessem o quão divertido eram. O grupo era formado, em sua maioria, por
garotas. Três, na verdade, e um homem, o que mais falava. Não são deles, pensei, aliviado.
Duas trajavam
vestidos simples, sem adereços, mas extremamente curtos. Já a outra, usava uma
mini-saia jeans e uma blusa com o decote maior do que eu imaginei que seria
possível um decote ser sem mostrar mais do que o normal. Se cabelos alisados de
forma não natural, Todas estavam maquiadas de forma assustadoramente forte, com
sombras cor-de-rosa sobre os olhos, quando não esverdeadas e batons escuros nos
lábios. Já o homem, vestia uma blusa de frio de marca, verde-escura, e usava a
touca da blusa sobre a cabeça.
Forcei-me a não
parecer incomodado. Com esse tipo de gente, geralmente não se deve arrumar
confusão. Não no bairro em que eu morava, pois parecia o Velho Oeste, onde tudo
era resolvido na base do tiro.
A conversa
ficava cada vez mais alta e as garotas soltavam risadas histéricas entre suas
falas estridentes. Indignado, por algum motivo desconhecido, resolvi prestar
atenção no que tanto falavam, mesmo que soubesse que passaria raiva.
- ...o Jorginho
logo vomitou no chão tudo da casa. Eu falei pra ele não bebe, mas ele insistiu.
– dizia ele, deixando claro o seu jeito “malandro” transparecer na voz. – Ai
ele dormiu. Botamos uma calcinha nele e tiramos várias fotos, se liga. –
continuou ele, enquanto mostrava as fotos em seu celular.
- Mas o
Jorginho é mó gato, por que você fez isso? – perguntou uma das garotas,
interessada.
- Então você já
deu pra ele, né? – riu o homem, enquanto as outras garotas riam incansavelmente.
– fala ai, ele tem pau grande? Maior que o meu?
Isso foi demais
pra mim. Coloquei os fones no ouvido e aumentei o volume da música para o
máximo possível e, mesmo assim, ao fundo, eu ouvia os sons da conversa, apesar
de não conseguir entender as palavras, o que já era alguma coisa.
Em alguns
minutos, em meio à escuridão do horizonte, dois olhos amarelados tremeluziram e
um som de buzina ecoou alto, sobre todos os outros sons. O trem vinha pelos
trilhos em sua baixa velocidade, serpenteando a estação.
Levantei-me e
fechei o gibi, tomando cuidado para colocar o dedo entre as páginas em que estava
para não as perder, e fiquei de pé frente ao vão. Quando o trem passou por mim,
o golpe de vento foi forte, mas não me movi. As janelas e portas dos vagões que
passavam por mim moviam-se rapidamente e, em intervalos pequenos, via meu
próprio reflexo neles. Um semblante cabisbaixo de um homem em seu inverno. Uma
sombra do que um dia foi.
O trem parou e
as portas automáticas se abriram lentamente. Entrei dentro do vagão e o vasculhei com os olhos de ponta a ponta.
O comprido
corredor cheio de cadeiras se estendia frio e estaria vazio se não fosse por um
homem de meia idade sentado, com a cabeça encostada no vidro e os olhos
fechados, dormindo profundamente. Tinha a pele branca e flácida e seus cabelos
quase brancos rareavam no topo da cabeça, lisos, jogados para trás. Usava uma
jaqueta marrom escura, com alguns botões faltando na parte da frente e uma
calça jeans surrada. Ao seu lado, caída sobre o chão de borracha preta, sua
mochila repousava, virada de cabeça para baixo e seus poucos pertences estavam
por todo o lado. Pensei em ajuda-lo, mas ele dormia de uma forma tão pacata,
que senti dó de acorda-lo. Pensei, por alguns segundos, em guardar as coisas na
mochila e colocar ao lado dele, mas o medo de que alguém achasse que eu o
estava roubando ou de que ele acordasse no meio do ato, me impediram. Fora isso, nada que pudesse ser uma ameaça.
Sentei-me em um
banco no canto e quando abri o gibi novamente, pronto para ler, mas o grupo da
estação entrou no mesmo vagão que eu e se sentou a algumas cadeiras de
distância.
“Sério?”
pensei, irritado. Eu iria até a última estação e, se eles não descessem antes
disso, a viagem junto a um bando de pessoas desagradáveis que falavam em voz
alta no meio da noite seria demasiadamente longa.
A conversa do
grupo continuou enquanto as portas do trem se fechavam e ele começava a andar,
aumentando a velocidade gradativamente. A medida que o som do trem correndo
aumentava, por causa da potência, o volume da conversa também ficava mais alto
para se adequar.
Eu sempre tive
consciência de ser uma pessoa naturalmente irritada com as coisas, isso corre
em minhas veias desde que descobri o lugar cinzento em que o mundo se situava.
A raiva que eu sentia não era raiva de algo, como se odeia alguém ou alguma
coisa, era uma raiva constante, angustiante, comprimida milimetricamente em
cada impulso nervoso em meu cérebro. Eu olhava para as pessoas e via o quão
feliz elas estavam, independente de sua situação atual, e não era capaz de
entender os motivos para isso. Essa irritação vinha no meu estado de espírito
comum, sempre raivoso, como um homem cuidando de sua amada, como um cão
guardando sua comida.
Andando a pé,
debaixo de chuva com uma blusa fina, a única que seu pequeno salário podia
comprar, enquanto o vento soprava e elas tremiam. Saindo no meio da noite para
um trabalho que elas não gostavam de fazer, para simplesmente sustentar os
filhos que acabaram por ter cedo demais em suas vidas. Ver uma mulher sorrir
para as amigas enquanto sabia que ia chega em sua casa e apanhar do marido por
ter se atrasado. Ter que fazer sexo com ele, mesmo contra a vontade, por medo
de seu marido buscar prazer em outras pessoas. Tudo isso era incompreensível
para mim, da forma mais pura possível. E essa incompreensão trazia a raiva em
uma coleira, com correntes prateadas.
Olhei pela
janela e passei a mão no vidro, limpando o embaçado. Desenhei um pequeno rosto nele, sorrindo. Ironia. A chuva ainda estava
forte... forte como naquele dia... caia pesada e o meu hálito criava nuvens
brancas de solidão.
Interlúdio -
Cicatrizes do tempo.
Apesar do frio
naquele fatídico dia, eu vestia apenas com uma camiseta preta, de uma banda que
gostava na época, e uma calça jeans escura. Estava na sétima série, mas já
estava me tornando o homem que virei nos dias de hoje, ou pelo menos estava no
caminho para isso.
Eu estudava em
uma escola pública na época e ela estava vazia. Era um daqueles dias
pós-feriado em que havia aula, então os alunos geralmente faltavam em massa,
mas mesmo assim, minha mãe me fez ir estudar, como era de costume. O professor
estava sentado sobre a mesa, fingindo fazer algumas anotações enquanto eu e os
outros três alunos presentes enrolávamos até a hora do intervalo. Eles
conversavam alegremente e contavam piadas sem graça enquanto eu desenhava
Pokémon na mesa.
Quando o sinal
bateu, me levantei da cadeira e desci para o pátio. O lugar era espaçoso e
amplo, com alguns bancos espalhados por ai, para os alunos comerem seus lanches
e jogarem jogos de cartas. O piso era verde-claro e ainda havia as linhas que
remetiam a uma época muito anterior a da que eu estudava, de quando aquilo tudo
fora uma grande quadra de futebol de quadra. O teto era alto branco, sem
janelas, onde o mofo crescia constantemente, o que deixava o cheiro do lugar
extremamente desagradável. Por isso, eu não gostava de ficar lá e sempre ia pra
fora, onde crescia uma grande arvore, de tronco grosso e raízes saindo da
terra.
Naquele dia,
recordo-me de ter saído imediatamente do pátio e ter ido para lá. Eu não tinha
qualquer amigo naquela escola, por isso, era livre para ir onde quisesse, pois
sabia que ninguém ia se importar. Na verdade, eu era completamente
negligenciado e me sentia praticamente invisível, como um fantasma da escola.
Não que eu fosse uma pessoa ruim, feia ou qualquer outra coisa, muito pelo
contrário. Eu era até apresentável na época, mas mesmo assim, os meus apelidos
não eram muito amigáveis. Doido ou Louco eram os nomes mais comuns quando
precisavam se referir a mim, além de Et ou Hospício.
Nunca achei os
nomes realmente ofensivos, apesar de tudo, eu passei a parar de ligar para
essas coisas depois de um tempo. Não sabia bem os motivos de me tratarem
daquela forma e até hoje não entendo muito bem, mas apesar de tudo, é fácil
refletir o motivo de me odiarem tanto. Eu era inteligente, era relativamente
bonito, mas gostava de coisas que mais ninguém gostava na época, por isso eu
era taxado como “estranho” ou “anormal”, o que já era motivo, pelo menos na
cabeça daquelas pessoas, para me tratarem assim.
Eu era
diferente deles todos, tanto na forma de pensar quanto na forma de agir, mas
sempre que eu me destacava em alguma coisa, diziam que era por eu ser estranho,
que só gente doida conseguia, queria ou gostava de fazer aquelas coisas e, acho
que no fundo, eles sentiam uma pequena culpa ou inveja e por isso queriam me
rebaixar, pra me colocar no mesmo posto miserável em que eles se encontravam ou
pra fazer com que eu me sentisse ainda menor do que elas, usando de agressão
moral e, algumas raras vezes, até física, refletindo a mediocridade delas,
negando alguma capacidade minha que tenha sido melhor que a deles na época.
Enquanto
passava pelo pátio, algo bateu com força na minha costela, talvez um cotovelo,
mas não emiti som algum, apesar da pequena pontada de dor.
- E ai, esquisitão? – era
Anderson, um sujeito de dezenove anos que ainda estava na oitava série. Ele era
quase duas cabeças mais alto do que eu, sendo que eu nunca fui um sujeito
baixo. Sua pele era escura, seus olhos negros e faltava um pedaço em seu dente
da frente. Alguns diziam que ele havia perdido em uma briga, outros diziam que
ele havia caído enquanto fugia da polícia. Mas o que mais vale a pena contar
sobre ele, é que era um sujeito perigoso, como aqueles valentões de filmes dos
anos oitenta.
- Ôpa. – respondi, passando a
mão sobre a costela, tentando amenizar a dor e me virando.
Ele estava com
três amigos, todos com quase o mesmo tamanho que ele e a mesma idade avançada
para o grau de escolaridade. Todos me encaravam com olhos de desaprovação.
- Estamos meio entediados aqui,
sabia? – Ele começou. Logo percebi que estava me enfiando em algum tipo de
joguinho de mau gosto. – Não temos nada pra fazer e não queremos voltar pra
aula, então por que você não nos ajuda?
- Ajudar como? – perguntei,
desconfiado. Nunca saia boa coisa de conversas assim, ainda mais com aquele
sujeito.
Ele investiu
pra cima de mim, rápido como o bote de uma serpente, e passou o braço em volta
dos meus ombros, me abraçando. Assustado, meu corpo ficou rígido com o
movimento de Anderson, mas logo voltou ao normal.
- Porque não escolhe um
amiguinho seu pra brincarmos? – começou ele, enquanto andava pelo pátio me
puxando junto. Eu precisava olhar para cima para encara-lo. – algum outro
retardado, já que estamos cansados de você.
- Brinquem com o Daniel, do
quinto ano. – disse rapidamente o primeiro nome que me veio à cabeça. – ele é
um cara bem legal.
- Ótimo! –
sorriu Anderson, ainda com os braços em volta do meu ombro. Aproveitando-se
disso, me empurrou com força para frente. Cambaleando, pego desprevenido, andei
desajeitadamente tentando retomar o equilíbrio, mas um dos amigos do agressor
colocou o pé na frente do meu. Tropecei e caí sobre o chão, com um baque surdo.
- O Daniel mandará lembranças. –
disse um dos garotos enquanto eles saiam de perto de mim e caminhavam rindo em
direção as escadas.
Você deve estar
se perguntando os motivos por eu ter sido tão frouxo com pessoas me agredindo
dessa forma e eu vou lhe contar o motivo. Eles eram adultos, famosos por serem
sujeitos perigosos, que já seguraram armas de fogo e já tinham pelos no rosto.
Eu era apenas um nerd esquisito, magrelo e alto demais pra minha idade, apesar
de tudo. Eu não queria encrenca com pessoas como eles, pois isso acarretaria em
coisas piores do que um olho roxo.
Assim,
levante-me, limpei as minhas roupas e sozinho, sai do pátio em passos
apressados, passando pela forte chuva que descia, e me abriguei sob a árvore lá
de fora. As pessoas chamavam-na de Arvore da Morte, pois rezava o boato de que
um padre havia se enforcado nela, amarrado a corda em seus galhos. Claro que
nunca liguei pra isso, mas o resto dos alunos evitava passar por lá. Mas
naquele dia, ocorreu algo diferente.
Quando cheguei
lá, arfante e cansado, percebi que havia uma garota do outro lado do tronco,
olhando para o horizonte, onde a atual quadra ficava. Uma garota que eu nunca
havia visto antes. Ela estava com uma camiseta preta, de uma banda de rock, e
usava uma pulseira com espinhos de ferro prateados. O meu queixo caiu e senti o
meu rosto esquentar. Ela ainda não havia me visto, então permaneci em silêncio
por algum tempo, enquanto pensava no que fazer. Eu nunca havia, de fato, tido
uma amiga e muito menos beijado uma, e graças a isso, não sabia conversar
direito com uma garota.
Seus cabelos
eram escuros, mas refletiam um brilho azulado, talvez mechas coloridas já
desbotadas. A pele era clara e o corpo era magro e bem desenhado. Senti um leve
formigamento na palma na mão e decidi dar-lhe oi.
Interlúdio. Fim.
De súbito,
senti o celular vibrando no bolso e dei um pequeno pulo na cadeira. Despertado,
peguei-o do bolso.
“Não consigo
dormir. Estou meio deprimida. Queria que estivesse aqui.” Era ela, estava
deprimida e eu nem precisava saber o motivo. Ela era como eu.
Pode me chamar
de egoísta, mas fiquei feliz naquele momento, pelo menos nos primeiros
segundos. Ela havia se lembrado de mim naquele momento e isso, como já disse,
era como um presente inesperado. Entretanto, no estante seguinte, senti-me mal.
Ela precisava
de mim, estava com problemas e eu não estava com ela para consola-la. Na
verdade, dificilmente estava. Eu queria estar ali, com a garota que eu mais
amei na minha vida, dizendo que tudo ficaria bem, que nada daria errado
enquanto eu estivesse ali, segurando sua mão com força. Queria acariciar os
seus cabelos e dizer que, se quisesse chorar, poderia fazer isso no meu ombro,
enquanto eu a tomava em meus braços e lhe dizia o quanto a amava e como sempre
estaria ali. Mas não era possível, tanto por eu não poder fazer nada daquilo
quanto ao estar ao lado dela sempre.
Eu não podia
fazer nada e sabia disso, era tão fraco e pequeno diante da maioria das pedras
que apareciam em meu caminho, que me perdia em pensamentos deprimentes. Eu não
possuía nada a oferecer para ela, não era uma garota para lhe atrair, não era
rico para lhe dar mimos e nem era presente para lhe dar todo o amor que
desejava dar. O que diria então para ela? Que esperasse pelo dia em que eu
seria um sujeito mais presente em sua vida? Que largasse tudo e que confiasse
em mim? Eu pareceria um idiota, tentando mudar algo natural, talvez ela me
achasse um babaca, um babaca sonhador. O que de fato eu acho que era.
“Eu queria
estar ai ao seu lado e dizer que tudo vai ficar bem, mas não posso. Só posso
dizer que estou pensando em você e que, quando te ver, farei de tudo pra te
fazer sorrir. Aguente, por favor.”
Não havia nada
melhor que eu pudesse fazer.
Quando me dei
conta, um forte cheiro de fumaça estava tomando conta do vagão por completo. Um
cheiro mais doce do que a fumaça geralmente é e logo estranhei isso. Voltei os
meus olhos para o vagão, averiguando a situação e percebi de onde o cheiro
vinha. O pequeno grupinho passava, de mão em mão, um cigarro de maconha,
enquanto ria aos ventos. Eles davam uma tragada no cigarro e passavam para o
companheiro ao lado, em rodinha.
O cheiro forte
já havia impregnado nas minhas narinas àquela altura, então resolvi abrir o
vidro. Com dificuldade, puxei as travas e o vidro desceu com força, batendo no
parapeito. O grupo nem se deu ao trabalho de olhar.
“Que saco, sabia
que eles iam fazer alguma merda pior do que simplesmente falar alto.” Pensei,
enquanto tentava me concentrar no gibi.
Da janela
aberta, algumas gotas ainda caiam e molhavam a minha boina. Guardei o gibi na
mochila com medo de que molhasse e resolvi trocar a música que ouvia. Coloquei
em uma ligeiramente mais pesada, com riffs de guitarra muito graves e uma
bateria frenética.
Logo percebi
que estava fantasiando sobre me levantar dali, ao som do solo de bateria, e
acertando socos no sujeito que fumava o cigarro de maconha. Imaginei-me pegando
o cigarro e queimando seu olho direito enquanto acertava socos em seu estômago.
A musica estava agressiva e cada vez mais rápida, a cena na minha cabeça estava
eletrizante, eu caminhava rápido, me movia rápido, pensava rápido, enquanto o
trem corria e as garotas gritavam, assustadas.
Mas, você me conhece. Naquela época, eu não faria nada disso. Na verdade, faria menos do que fiz, se estivesse totalmente consciente. Talvez fosse apenas um ato de auto-preservação, um instinto natural, como o de uma leoa, mesmo em bando, reluta em atacar um rinoceronte. Ela precisa, precisa comer e dar de comer para o seu macho e filhote, mas não o faz. Ao invés disso, procura outra saída, uma presa mais frágil. Eu fiz o mesmo, só que o meu ato foi muito menos honroso.
Quando o cheiro tornava-se insuportável e, mesmo que fosse coisa da minha cabeça, comecei a sentir-me um pouco zonzo, resolvi trocar de vagão quando o trem parasse na próxima estação.
Eu estava isolado, o homem era muito maior do que eu, tanto em relação a sua altura quanto a seu peso. Tá bom, talvez apenas o peso, afinal, eu era um sujeito um pouco alto, mas isso não mudava nada. Eu levaria uma surra, qualquer que fosse a minha reação, se ela fosse da mais mínima agressividade, ainda sem levar em consideração o fato do sujeito estar drogado.
Quando o trem parou, levantei-me, apanhei a mochila e fechei o gibi, deixando um dedo entre as páginas onde havia parado de ler. Então, dei alguns passos em direção à porta, até perceber que ela não estava aberta. Confuso, olhei para o lado e vi que todas as outras haviam se aberto normalmente. Saco, pensei, enquanto me direcionava a porta do outro lado do vagão.
Quando caminhava pelo corredor, apressado, com medo das portas se fecharem e eu parecer um idiota perante o pequeno grupo, que ainda ria incessantemente, em meio à palavras agressivas e de baixo calão, tropecei. Sim, eles não sabiam que eu estava saindo do vagão por causa deles, o que tornava tudo ainda mais preocupante, pelo menos para mim, já que, se a porta se fechasse, eu ficaria preso dentro do vagão até a próxima e eles pensariam qualquer coisa do tipo "Ele perdeu a estação!" e isso geraria muitas risadas do grupo, mais do que o normal, claro.
Retomando, eu tropecei. Meu pé chocou-se com algo, mas não dei atenção. Resolvi simplesmente ignorar isso e continuar, e esse foi o meu erro. O que quer que fosse, enroscou-se na minha perna, enrolando-se como uma serpente, me fazendo perder o equilíbrio de tal forma, que não consegui me segurar em lugar nenhum antes de desabar sobre o carpete de borracha negra que cobria o piso.
A dor que subiu pelo meu nariz foi o de menos, estava acostumado a me machucar. O pior foi o barulho, um baque surdo, como o de um tapa no rosto, daqueles de novela. Senti algo quente escorrendo, mas não liguei. Tentei me levantar, apressado, enquanto ouvia o sinal que precede o fechamento das portas. Quando chutei o objeto com o pé livre, tentando me soltar, a porta se fechou ao mesmo tempo em que percebi algo ao meu lado. Era o homem de meia idade, que antes dormia tranquilamente. Olhei para os meus pés. A mochila dele estava aberta, com todos os pertences espalhados pelo vagão, rolando, enquanto o trem começava se movimentar.
- Que diabos você está fazendo? - perguntou ele, com um olhar incrédulo. - Sabe o que tinha na porra da mochila pra sair chutando ela por ai, seu filhinho da puta? - disse, com uma voz que parecia mais agressiva do que imaginei que aquele sujeito de aparência precária poderia ser capaz de fazer soar, enquanto olhava em volta. Risos ecoaram às minhas costas, enquanto eu me levantava, trôpego, e me virava de frente para o homem.
- Eu só tropecei! - disse, tentando parecer inocente, levando em consideração que realmente era. -Quando entrei aqui, já estava tudo jogado por ai, a culpa não foi minha!
O homem arregalou os olhos, como se não acreditasse no que eu havia dito.
- Pegue tudo! Agora! Antes que eu te dê um soco nessa sua cara de retardado! - rosnou, enfurecido.
- Ele não fez nada mesmo, velho. - veio uma voz ao fundo do vagão. Rapidamente reconheci como a voz do sujeito que fumava maconha, então ele continuou, falando lentamente, com pausas entre as palavras. - Essa merda já tava ai, eu vi. Entramos juntos no trem e tava tudo jogado. Ele só tropeçou na sua mochila.
O homem de meia idade pareceu enfurecer-se diante daquelas palavras. Seu rosto, de branco, passou a tornar-se de um rosa claro, ligeiramente brilhante, graças às gotas de suor que pareciam ter aparecido de uma hora para a outra em seu rosto. Logo, resmungou qualquer coisa, provavelmente após perceber que o sujeito que falava era duas vezes maior do que ele, e abaixou-se para pegar seus pertences e colocar de volta na mochila. É como dizem, no final das contas, a ajuda vem de onde menos se espera. Ou é o que eu pensei no momento...
- Vem cá, senta aqui com a gente. - disse o homem negro, enquanto pegava o cigarro da mão da garota ao seu lado. To ligado quem é você, é o Alexandre, né?
Dessa vez, senti um friozinho subir pela espinha. Era comum, pelo menos para mim, as pessoas me conhecerem, mas eu não conhecer ninguém, isso geralmente acontecia graças às histórias que contavam sobre mim por ai, mesmo antes de eu ser o Espada-Negra. Não, isso não era qualquer tipo de boa-fama, como as pessoas estão acostumadas a pensar que é quando muitas pessoas te conhecem. Dependendo das histórias, isso pode ser perigoso, realmente perigoso, e esse é motivo do calafrio que tive. Era comum as pessoas comentarem sobre o fato de eu não dormir nunca, o que era uma meia verdade. Eu tinha insônia, isso é um fato, mas dai, não dormir nunca, já é demais. Isso estava diretamente relacionado ao fato de eu trabalhar de madrugada e ainda passar o dia acordado, procrastinando. Outras, comentavam sobre o fato de eu ser um sujeito ligado ao satanismo, ocultismo e outras ramificações religiosas não casuais e... digamos, de certa forma, odiadas. O ápice disso deu-se, pelo fato de, a um tempo atrás, eu ter um cachorro negro. Sim, um cachorro negro, grande como um urso, chamado Junior. Como ele não era agressivo, de forma alguma, e estava acostumado a andar por aí sem coleira, desde bebê, eu chegava da escola, enquanto estudava à tarde, e o levava para passear enquanto escurecia. Alguém, que com certeza estava totalmente drogado, me viu conversando, durante o crepúsculo, com um cachorro negro, enorme, que andava calmamente ao meu lado, sem focinheira, sem corrente. Em sua tenra loucura, a pessoa achou que o cão podia ser o diabo em pessoa, levando em conta a pequena fama que eu já possuía. Outras ainda, juravam por todos os deuses que conheciam, que eu vomitava sangue, que eu matava animais e os usava em rituais satânicos, que eu colecionava dentes de outras pessoas e toda as sorte de bizarrices.
Resumidamente, as pessoas sempre me conheciam e nunca por um motivo bom. Cansei de contar as vezes em que fui ameaçado de morte ou quantas vezes realmente tentaram me matar.
Por isso, estremeci.
-Sim, sou eu. - respondi, confuso. - e você? Quem que é?
O homem se sentou no banco de plástico do vagão, tragando e jogando o cigarro, que já estava no fim, pela janela. Em seguida, soprou a fumaça calmamente, deixando-a dançar pelo vagão. Eu parei de frente para ele, de pé, segurando-me em uma barra de ferro.
- Sabia que não me conhecia, sou amigo do Eduardo.
Eduardo era um maloqueiro de uma escola pública local. Era um sujeito cheio de amigos, todo mundo se identificava com ele. Todo mundo, menos eu e os meus poucos companheiros.
- Ah sim. - respondi, preenchendo o espaço silencioso que pairou.
- Ele é um cara muito legal, devo vários favores pra ele. Já me tirou de cada merda, cara... - comentou ele, virando-se para o homem de meia idade que ainda resmungava, pegando os pertences do chão.
- Imagino. Nunca conversamos de verdade. - disse, deixando claro que ele não era meu amigo.
- Ele conta coisas esquisitas sobre você, sabe? - comentou, soltando um risinho enquanto virava-se para as amigas, que, pela primeira vez desde que as vi, estavam quietas, como se fossem mudas. - Conta que você coleciona crânios de animais e coisa do tipo. É verdade isso? - terminou, virando-se para o homem novamente.
Eu sabia que rumo aquela conversa estava tomando.- Claro que não! - exclamei, fingindo um riso seco. - Que tipo de maluco faz isso?
Um barulho ecoou pelo vagão, indicando que o trem estava se aproximando de uma nova estação. Aproveitei a deixa.
- Escuta, tenho que ir, cara. Já passou da minha estação e eu preciso voltar, estou atrasado pra... - disse, enquanto olhava pela janela, ajeitando a mochila nos ombros. Mas antes de eu terminar a frase, o sujeito me segurou pelo braço.
- Quietinho.
Se me perguntasse, eu não saberia o que estava acontecendo. Uma coisa era certa, não era nada agradável. Nessa fração de segundos, enquanto os dedos grossos do sujeito apertavam o meu braço na altura do pulso, liguei tudo a um assalto. Fazia sentido, se você não parasse para pensar sobre um cara contar que era amigo do Eduardo e que o Eduardo falava coisas estranhas sobre mim. Mas era apenas uma especulação, claro, eu não tinha ideia do que esse homem poderia fazer, do que ele queria comigo. Mas então, lembrei-me dele ter mencionado os crânios de animais e isso me fez entender tudo. Isso pelo fato de muitas pessoas sentirem uma sede incrivelmente forte de querer me matar ou, no mínimo, me quebrar os ossos, baseando esse desejo em boatos. Ele não queria o meu celular ou o pouquíssimo dinheiro na minha carteira.
Falando em celular, ele vibrou no meu bolso nesse exato momento. Não dá pra ler agora, Laura. Foi mal. Pensei.
A porta automática fez um barulho, quase um grunhido metálico, enquanto abria-se. Olhei para o lado e o homem de meia idade ainda estava lá, sentado de lado para nós, abrindo um jornal velho e amassado, que provavelmente havia caído da mochila.
- Senta aqui do meu lado. - disse o sujeito, enquanto me puxava para o lado com força, fazendo-me cair sobre o banco. Vale lembrar que agora, ele falava com a voz o mais baixa possível. - Fica quieto, se não, eu te jogo dessa merda de vagão quando o trem começar a andar.
Eu estava acostumado a esse tipo de ameaça. Na verdade, eu não estava realmente assustado, apesar de evitar qualquer tipo de confronto direto com o sujeito. Não, longe disso, não tinha realmente muita coisa a perder, no final das contas, por isso, nunca tive um grande receio de morrer.
Eu não era um sonhador, que anseia por se formar, ter uma carreira de sucesso e ganhar toneladas de dinheiro sem fazer esforço. Longe disso, eu estava tão desiludido com os estudos, que estava completamente alheio à eles. Claro que os sonhos não se resumem realmente a isso. Algumas pessoas passam a vida desejando conhecer a Disney, morar em algum país distante, ver alguma maravilha natural, escalar alguma montanha... e quanto a esse tipo de sonho, eu também não possuía nenhum. Claro, eu tinha os meus desejos, mas eles soavam tão levianos, tão distantes, que eu me contentava em desejá-los e não a sonhá-los ou persegui-los por toda a minha vida. O que tinha a perder realmente naquele momento? Eu estava deveria me preocupar? Havia algo que eu realmente quisesse fazer? Não, não havia, eu já havia perdido a vontade de perder o meu precioso tempo pensando em coisas inúteis que eu sei que nunca aconteceriam. Eu já não desejava nada mais, nada maior, nada além do que já tinha. Era como um garoto sem direção, sem uma estrada para seguir, se é que isso está fazendo algum sentido. Eu não vivia, eu não me sentia vivo, de forma alguma. Era apenas um garoto infeliz esperando, dia após dia, a morte dar as caras.
Virei-me para as garotas, procurando realmente uma luz naquela situação. Elas desviaram o olhar e começaram a conversar sobre cores de batom, claramente se esforçando para encontrar as palavras.
O trem aumentava a velocidade, correndo pelos trilhos da cidade, na calada da noite. Os postes lá fora, iluminavam ruas sombrias, sem uma alma viva caminhando. Já deve ter passado da meia noite. Desse jeito, vou me atrasar para o trabalho. Pensei, preocupado. Olhei para o homem, quando vi que ele se mexia. Estava despreocupado, com o rosto impássivel, acendendo um novo cigarro de maconha. Aqui, do lado dele, vou acabar ficando drogado. Refleti, tentando rir um pouco, mesmo que mentalmente.
O cheiro começou a subir rapidamente, e logo me vi envolto a fumaça com cheiro de grama queimada. Imagino como as pessoas podem gostar deste cheiro, pois, segundos após a fumaça penetras pelas minhas narinas, comecei a sentir o estômago embrulhar, como se não tivesse comido nada a séculos, porém, sem a fome que viria normalmente. Logo percebi que, sentir o cheiro de longe era tão incomparável com sentir o cheiro de perto que eu deveria ter ficado quieto enquanto ainda estava sentado longe. Comecei a respirar pela boca, em fortes golfadas, tentando deixar o ar entrar em meus pulmões, mas na segunda tentativa, comecei a tossir. Tosse seca e amarga.
- Nunca deu um trago, né merdinha? - riu o homem, percebendo o meu ataque de tosse. Era verdade, mas não respondi. Simplesmente virei o rosto e contemplei a janela aberta à frente, onde tudo era escuridão.
O trem continuou durante alguns segundos em sua velocidade normal, até começar a reduzir, lentamente, enquanto o homem de meia idade, o encrenqueiro, se levantava e agarrava a mochila. Estava indo embora.
Quando ele saiu e a porta automática se fechou, o homem virou-se para mim, com um olhar comum, como o de uma pessoa que passa manteiga no pão, com as sobrancelhas erguidas. Mal sabia eu o que se seguiria.
Mas, você me conhece. Naquela época, eu não faria nada disso. Na verdade, faria menos do que fiz, se estivesse totalmente consciente. Talvez fosse apenas um ato de auto-preservação, um instinto natural, como o de uma leoa, mesmo em bando, reluta em atacar um rinoceronte. Ela precisa, precisa comer e dar de comer para o seu macho e filhote, mas não o faz. Ao invés disso, procura outra saída, uma presa mais frágil. Eu fiz o mesmo, só que o meu ato foi muito menos honroso.
Quando o cheiro tornava-se insuportável e, mesmo que fosse coisa da minha cabeça, comecei a sentir-me um pouco zonzo, resolvi trocar de vagão quando o trem parasse na próxima estação.
Eu estava isolado, o homem era muito maior do que eu, tanto em relação a sua altura quanto a seu peso. Tá bom, talvez apenas o peso, afinal, eu era um sujeito um pouco alto, mas isso não mudava nada. Eu levaria uma surra, qualquer que fosse a minha reação, se ela fosse da mais mínima agressividade, ainda sem levar em consideração o fato do sujeito estar drogado.
Quando o trem parou, levantei-me, apanhei a mochila e fechei o gibi, deixando um dedo entre as páginas onde havia parado de ler. Então, dei alguns passos em direção à porta, até perceber que ela não estava aberta. Confuso, olhei para o lado e vi que todas as outras haviam se aberto normalmente. Saco, pensei, enquanto me direcionava a porta do outro lado do vagão.
Quando caminhava pelo corredor, apressado, com medo das portas se fecharem e eu parecer um idiota perante o pequeno grupo, que ainda ria incessantemente, em meio à palavras agressivas e de baixo calão, tropecei. Sim, eles não sabiam que eu estava saindo do vagão por causa deles, o que tornava tudo ainda mais preocupante, pelo menos para mim, já que, se a porta se fechasse, eu ficaria preso dentro do vagão até a próxima e eles pensariam qualquer coisa do tipo "Ele perdeu a estação!" e isso geraria muitas risadas do grupo, mais do que o normal, claro.
Retomando, eu tropecei. Meu pé chocou-se com algo, mas não dei atenção. Resolvi simplesmente ignorar isso e continuar, e esse foi o meu erro. O que quer que fosse, enroscou-se na minha perna, enrolando-se como uma serpente, me fazendo perder o equilíbrio de tal forma, que não consegui me segurar em lugar nenhum antes de desabar sobre o carpete de borracha negra que cobria o piso.
A dor que subiu pelo meu nariz foi o de menos, estava acostumado a me machucar. O pior foi o barulho, um baque surdo, como o de um tapa no rosto, daqueles de novela. Senti algo quente escorrendo, mas não liguei. Tentei me levantar, apressado, enquanto ouvia o sinal que precede o fechamento das portas. Quando chutei o objeto com o pé livre, tentando me soltar, a porta se fechou ao mesmo tempo em que percebi algo ao meu lado. Era o homem de meia idade, que antes dormia tranquilamente. Olhei para os meus pés. A mochila dele estava aberta, com todos os pertences espalhados pelo vagão, rolando, enquanto o trem começava se movimentar.
- Que diabos você está fazendo? - perguntou ele, com um olhar incrédulo. - Sabe o que tinha na porra da mochila pra sair chutando ela por ai, seu filhinho da puta? - disse, com uma voz que parecia mais agressiva do que imaginei que aquele sujeito de aparência precária poderia ser capaz de fazer soar, enquanto olhava em volta. Risos ecoaram às minhas costas, enquanto eu me levantava, trôpego, e me virava de frente para o homem.
- Eu só tropecei! - disse, tentando parecer inocente, levando em consideração que realmente era. -Quando entrei aqui, já estava tudo jogado por ai, a culpa não foi minha!
O homem arregalou os olhos, como se não acreditasse no que eu havia dito.
- Pegue tudo! Agora! Antes que eu te dê um soco nessa sua cara de retardado! - rosnou, enfurecido.
- Ele não fez nada mesmo, velho. - veio uma voz ao fundo do vagão. Rapidamente reconheci como a voz do sujeito que fumava maconha, então ele continuou, falando lentamente, com pausas entre as palavras. - Essa merda já tava ai, eu vi. Entramos juntos no trem e tava tudo jogado. Ele só tropeçou na sua mochila.
O homem de meia idade pareceu enfurecer-se diante daquelas palavras. Seu rosto, de branco, passou a tornar-se de um rosa claro, ligeiramente brilhante, graças às gotas de suor que pareciam ter aparecido de uma hora para a outra em seu rosto. Logo, resmungou qualquer coisa, provavelmente após perceber que o sujeito que falava era duas vezes maior do que ele, e abaixou-se para pegar seus pertences e colocar de volta na mochila. É como dizem, no final das contas, a ajuda vem de onde menos se espera. Ou é o que eu pensei no momento...
- Vem cá, senta aqui com a gente. - disse o homem negro, enquanto pegava o cigarro da mão da garota ao seu lado. To ligado quem é você, é o Alexandre, né?
Dessa vez, senti um friozinho subir pela espinha. Era comum, pelo menos para mim, as pessoas me conhecerem, mas eu não conhecer ninguém, isso geralmente acontecia graças às histórias que contavam sobre mim por ai, mesmo antes de eu ser o Espada-Negra. Não, isso não era qualquer tipo de boa-fama, como as pessoas estão acostumadas a pensar que é quando muitas pessoas te conhecem. Dependendo das histórias, isso pode ser perigoso, realmente perigoso, e esse é motivo do calafrio que tive. Era comum as pessoas comentarem sobre o fato de eu não dormir nunca, o que era uma meia verdade. Eu tinha insônia, isso é um fato, mas dai, não dormir nunca, já é demais. Isso estava diretamente relacionado ao fato de eu trabalhar de madrugada e ainda passar o dia acordado, procrastinando. Outras, comentavam sobre o fato de eu ser um sujeito ligado ao satanismo, ocultismo e outras ramificações religiosas não casuais e... digamos, de certa forma, odiadas. O ápice disso deu-se, pelo fato de, a um tempo atrás, eu ter um cachorro negro. Sim, um cachorro negro, grande como um urso, chamado Junior. Como ele não era agressivo, de forma alguma, e estava acostumado a andar por aí sem coleira, desde bebê, eu chegava da escola, enquanto estudava à tarde, e o levava para passear enquanto escurecia. Alguém, que com certeza estava totalmente drogado, me viu conversando, durante o crepúsculo, com um cachorro negro, enorme, que andava calmamente ao meu lado, sem focinheira, sem corrente. Em sua tenra loucura, a pessoa achou que o cão podia ser o diabo em pessoa, levando em conta a pequena fama que eu já possuía. Outras ainda, juravam por todos os deuses que conheciam, que eu vomitava sangue, que eu matava animais e os usava em rituais satânicos, que eu colecionava dentes de outras pessoas e toda as sorte de bizarrices.
Resumidamente, as pessoas sempre me conheciam e nunca por um motivo bom. Cansei de contar as vezes em que fui ameaçado de morte ou quantas vezes realmente tentaram me matar.
Por isso, estremeci.
-Sim, sou eu. - respondi, confuso. - e você? Quem que é?
O homem se sentou no banco de plástico do vagão, tragando e jogando o cigarro, que já estava no fim, pela janela. Em seguida, soprou a fumaça calmamente, deixando-a dançar pelo vagão. Eu parei de frente para ele, de pé, segurando-me em uma barra de ferro.
- Sabia que não me conhecia, sou amigo do Eduardo.
Eduardo era um maloqueiro de uma escola pública local. Era um sujeito cheio de amigos, todo mundo se identificava com ele. Todo mundo, menos eu e os meus poucos companheiros.
- Ah sim. - respondi, preenchendo o espaço silencioso que pairou.
- Ele é um cara muito legal, devo vários favores pra ele. Já me tirou de cada merda, cara... - comentou ele, virando-se para o homem de meia idade que ainda resmungava, pegando os pertences do chão.
- Imagino. Nunca conversamos de verdade. - disse, deixando claro que ele não era meu amigo.
- Ele conta coisas esquisitas sobre você, sabe? - comentou, soltando um risinho enquanto virava-se para as amigas, que, pela primeira vez desde que as vi, estavam quietas, como se fossem mudas. - Conta que você coleciona crânios de animais e coisa do tipo. É verdade isso? - terminou, virando-se para o homem novamente.
Eu sabia que rumo aquela conversa estava tomando.- Claro que não! - exclamei, fingindo um riso seco. - Que tipo de maluco faz isso?
Um barulho ecoou pelo vagão, indicando que o trem estava se aproximando de uma nova estação. Aproveitei a deixa.
- Escuta, tenho que ir, cara. Já passou da minha estação e eu preciso voltar, estou atrasado pra... - disse, enquanto olhava pela janela, ajeitando a mochila nos ombros. Mas antes de eu terminar a frase, o sujeito me segurou pelo braço.
- Quietinho.
Se me perguntasse, eu não saberia o que estava acontecendo. Uma coisa era certa, não era nada agradável. Nessa fração de segundos, enquanto os dedos grossos do sujeito apertavam o meu braço na altura do pulso, liguei tudo a um assalto. Fazia sentido, se você não parasse para pensar sobre um cara contar que era amigo do Eduardo e que o Eduardo falava coisas estranhas sobre mim. Mas era apenas uma especulação, claro, eu não tinha ideia do que esse homem poderia fazer, do que ele queria comigo. Mas então, lembrei-me dele ter mencionado os crânios de animais e isso me fez entender tudo. Isso pelo fato de muitas pessoas sentirem uma sede incrivelmente forte de querer me matar ou, no mínimo, me quebrar os ossos, baseando esse desejo em boatos. Ele não queria o meu celular ou o pouquíssimo dinheiro na minha carteira.
Falando em celular, ele vibrou no meu bolso nesse exato momento. Não dá pra ler agora, Laura. Foi mal. Pensei.
A porta automática fez um barulho, quase um grunhido metálico, enquanto abria-se. Olhei para o lado e o homem de meia idade ainda estava lá, sentado de lado para nós, abrindo um jornal velho e amassado, que provavelmente havia caído da mochila.
- Senta aqui do meu lado. - disse o sujeito, enquanto me puxava para o lado com força, fazendo-me cair sobre o banco. Vale lembrar que agora, ele falava com a voz o mais baixa possível. - Fica quieto, se não, eu te jogo dessa merda de vagão quando o trem começar a andar.
Eu estava acostumado a esse tipo de ameaça. Na verdade, eu não estava realmente assustado, apesar de evitar qualquer tipo de confronto direto com o sujeito. Não, longe disso, não tinha realmente muita coisa a perder, no final das contas, por isso, nunca tive um grande receio de morrer.
Eu não era um sonhador, que anseia por se formar, ter uma carreira de sucesso e ganhar toneladas de dinheiro sem fazer esforço. Longe disso, eu estava tão desiludido com os estudos, que estava completamente alheio à eles. Claro que os sonhos não se resumem realmente a isso. Algumas pessoas passam a vida desejando conhecer a Disney, morar em algum país distante, ver alguma maravilha natural, escalar alguma montanha... e quanto a esse tipo de sonho, eu também não possuía nenhum. Claro, eu tinha os meus desejos, mas eles soavam tão levianos, tão distantes, que eu me contentava em desejá-los e não a sonhá-los ou persegui-los por toda a minha vida. O que tinha a perder realmente naquele momento? Eu estava deveria me preocupar? Havia algo que eu realmente quisesse fazer? Não, não havia, eu já havia perdido a vontade de perder o meu precioso tempo pensando em coisas inúteis que eu sei que nunca aconteceriam. Eu já não desejava nada mais, nada maior, nada além do que já tinha. Era como um garoto sem direção, sem uma estrada para seguir, se é que isso está fazendo algum sentido. Eu não vivia, eu não me sentia vivo, de forma alguma. Era apenas um garoto infeliz esperando, dia após dia, a morte dar as caras.
Virei-me para as garotas, procurando realmente uma luz naquela situação. Elas desviaram o olhar e começaram a conversar sobre cores de batom, claramente se esforçando para encontrar as palavras.
O trem aumentava a velocidade, correndo pelos trilhos da cidade, na calada da noite. Os postes lá fora, iluminavam ruas sombrias, sem uma alma viva caminhando. Já deve ter passado da meia noite. Desse jeito, vou me atrasar para o trabalho. Pensei, preocupado. Olhei para o homem, quando vi que ele se mexia. Estava despreocupado, com o rosto impássivel, acendendo um novo cigarro de maconha. Aqui, do lado dele, vou acabar ficando drogado. Refleti, tentando rir um pouco, mesmo que mentalmente.
O cheiro começou a subir rapidamente, e logo me vi envolto a fumaça com cheiro de grama queimada. Imagino como as pessoas podem gostar deste cheiro, pois, segundos após a fumaça penetras pelas minhas narinas, comecei a sentir o estômago embrulhar, como se não tivesse comido nada a séculos, porém, sem a fome que viria normalmente. Logo percebi que, sentir o cheiro de longe era tão incomparável com sentir o cheiro de perto que eu deveria ter ficado quieto enquanto ainda estava sentado longe. Comecei a respirar pela boca, em fortes golfadas, tentando deixar o ar entrar em meus pulmões, mas na segunda tentativa, comecei a tossir. Tosse seca e amarga.
- Nunca deu um trago, né merdinha? - riu o homem, percebendo o meu ataque de tosse. Era verdade, mas não respondi. Simplesmente virei o rosto e contemplei a janela aberta à frente, onde tudo era escuridão.
O trem continuou durante alguns segundos em sua velocidade normal, até começar a reduzir, lentamente, enquanto o homem de meia idade, o encrenqueiro, se levantava e agarrava a mochila. Estava indo embora.
Quando ele saiu e a porta automática se fechou, o homem virou-se para mim, com um olhar comum, como o de uma pessoa que passa manteiga no pão, com as sobrancelhas erguidas. Mal sabia eu o que se seguiria.