quinta-feira, 20 de setembro de 2012


Uma dança para dois.

Para começar e organizar minhas memórias de forma duradoura, uma breve descrição sobre mim cairia muito bem, pelo menos para deixa-lo a par de quem eu era antes de me tornar a pessoa da qual todos vocês ouviram falar.
Para início de conversa, eu possuía vários pseudônimos, mais do que posso me recordar. Alguns esquecidos ao longo do tempo, conhecidos apenas por apenas um pequeno punhado de pessoas, já outros que eram usados com maior frequência, por amigos e colegas. É necessário lembra-los que, Sombra ou Espada Negra, não existia na época, muito menos os nomes mais baixos e chulos, como Ninja Urbano e alguns outros. Dando nome aos bois, eu era simplesmente Alexandre Oppenheimer. Não tinha qualquer título ou sobrenome majestoso e imponente como O Grande, mas era chamado pela alcunha simpática de Alex. Assim como todos os garotos da minha idade com esse nome.
Além de tritanopia, eu possuía depressão, tanto sazonal quanto endógena. Resultados da Síndrome de Peter Pan que desenvolvi alguns anos antes do início dessa história. Graças a isso, pode ser que algumas passagens do livro que tem em mãos tendam a inclinarem para um lado um pouco melancólico, talvez até dramático ou lírico além do necessário.
Vivia em um bairro comum de classe média/baixa, em um condomínio de casas que poderia ser refletido metaforicamente como um pequeno Oasis no meio do subúrbio. Rodeado com muros altos, com fios elétricos em seu topo, o lugar era bastante calmo e pacato, com crianças brincando na rua a qualquer hora do dia, ou da noite, sem qualquer perigo eminente que brincadeiras fora de casa geralmente poderiam proporcionar. Era cheio de pequenas aglomerações de plantas bem cultivadas e podadas, a grama crescia verde e as árvores eram altas e majestosas.
Lá, eu passei esse fatídico ano de minha vida, lá, naquele pequeno e agradável condomínio, começou a experiência a qual todos vocês estão familiarizados, apesar de não souberem da missa um terço. Lá eu criei coragem para fazer o que ninguém realmente havia feito, lá eu consegui inflamar o coração de alguns homens a seguirem um caminho obscuro, sem nada a temer. Lá, a Liga Das Sombras foi criada e lá, naquele local estranhamente contraditório com o que nos tornamos ou fomos forçados a nos tornar, minhas memórias começam se tornarem interessantes e a minha monótona vida de pequeno adulto começou a tomar forma.
Lá, como já estão familiarizados, percebi que a minha verdadeira vocação não residia em trabalhar em um escritório, com pessoas menos inteligentes do que eu me dando ordens e levantando a voz comigo simplesmente por estarem onde estavam por serem mais velhos. A minha verdadeira vocação se mantinha em um estranho poço de desejos, se mantinha sob uma forte chuva de inverno, se mantinha nas cartas de tarô de uma velha louca.

Foram dias turbulentos, não vou mentir. Eram cheios de temores regulares sobre o dia seguinte, se eu ainda estaria vivo, se eu poderia encontra-la de novo... mas como já sabem, as coisas demoraram para dar realmente errado. Eu sempre fui um sujeito sortudo, isso é um fato, as coisas simplesmente davam certo para mim, independente dos caminhos e meios que eu utilizasse e esse foi o maior motivo do meu fracasso. Eu achava que poderia fazer qualquer coisa, eu me agarrava as mais vãs esperanças que poderiam me salvar de uma queda, achando que no final das contas, daria um jeito em qualquer problema que aparecesse. Eu era insensato, eu era intolerante, eu não estava preparado para enfrentar problemas tão grandes, sendo alguém tão pequeno. O resultado foi o qual já estão acostumados a ouvir, fui traído e derrubado.

As razões de eu ter me tornado o que me tornei são simples, claras como um dia de verão. Eu me moldei em tristeza, me moldei em um antro de melancolia, sofrendo em silêncio, levando uma vida que não gostaria. Todos possuem o direito de perder a sanidade depois de um tempo. Todos devem se esquecer do que é dito para nós, do que é certo e o que é errado e seguir os próprios instintos, seus próprios ideais.

O resultado disso, como é de se supor, são feridas. Cicatrizes profundas e, algumas vezes, grandes demais para cicatrizarem sozinhas, mas cicatrizes são provas de que o medo nos deixou. Cicatrizes mostram o que fizemos um dia, o quão corajoso fomos, tentando fazer coisas às quais não estamos acostumados, às quais é necessária uma pequena quantidade de impulso momentâneo e, talvez, idiotice. Mas continuam sendo marcas de coragem. Continuam simbolizando eternamente um momento em que você tentou algo que não conseguiria. Que havia dúvidas sobre o seu sucesso.

“Flertar com a morte.” Era uma frase comum na Liga Das Sombras. Dizíamos quase como um hino, uma frase própria que apenas nós entendíamos o significado mais profundo... mas agora eu entendo o que ela quer dizer de verdade. Víamos essa expressão ímpar como se a morte fosse algo que deveria ser cortejado, acolhido de braços abertos, mas nenhum de nós queria realmente que ela batesse à porta. Cantávamos aos ventos que flertávamos com a morte, que trocávamos olhares, carícias e até beijos, mas nunca a levávamos para a cama. Como se ela fosse uma amante antiga, uma garota que não queremos perder.

É verdade, para fazer o que fazíamos na Liga Das Sombras, você não podia temer a morte e esse era o nosso valor mais profundo, mais ligado às nossas vidas. Mas nos esquecemos de uma coisa, durante o doce passar do tempo, nos esquecemos de que não é a morte que devemos temer. É o medo que devemos temer. Você precisa agir como se sentisse o gélido e pútrido hálito da morte em sua seu encalço e seus olhos negros e sem brilho, sempre vigilantes, observando cada passo. Você precisa ter coragem de se aproximar e chama-la para sair. Se aproximar e lhe dizer o quanto ela é linda. Faze-la acreditar que é linda e que, apesar de tudo, ela não pode te machucar. Não importa o quanto a ame. Não importa o quanto ela te use e depois vá embora.
Eu amei sofri, lutei e me reergui, mas no final das contas, tudo não passou de um pequeno evento na vida da maioria, apesar deste pequeno evento ter sido como uma boia pra mim. Para que eu não me afogasse em mágoas.




A música realmente é uma paixão complicada, pois se você não lhe dá a atenção que lhe é merecida, não importa quantas vezes as cordas do instrumento a chame, ela não virá. Se, por ironia do destino, ela resolver dar as caras, não será de boa vontade e o seu semblante refletirá apenas uma pequena fração da beleza que um dia já teve. Descobri isso da pior forma possível.
O vento assobiava pela fresta aberta da janela enquanto grossas gotas de chuva chocavam-se fortemente com o vidro embaçado. O céu nublado, coberto por um manto de nuvens cinzentas, era rasgado constantemente por raios esbranquiçados que serpenteavam de um lado para o outro. Enquanto isso, eu tentava, inutilmente, retirar algum som agradável das cordas metálicas de um empoeirado violão negro e brilhante. Havia se passado muito tempo desde a ultima melodia que meus dedos deram vida, por isso, eles escorregavam e doiam enquanto eu os forçava em uma singular dança com uma companheira orgulhosa demais para ser conduzida.
Os acordes lamentavam o meu desempenho e as cordas clamavam por um dedilhado suave, mas não fui capaz de lhes conceder tal desejo. Irritado, resmunguei qualquer coisa com uma voz quase gutural e guardei o violão em sua capa de couro escuro com certa violência. Fechei o zíper e o larguei em um canto, encostado à parede enquanto murmurava palavrões. Havia tentado por quase duas horas e as cordas não omitiram nada mais do que notas sortidas, que sibilaram fracas pelo quarto e foram abafadas pelos trovões lá fora.
Não vou mentir. No minuto seguinte em que o pequeno ataque raivoso passou, percebi o quanto estava triste, pedindo perdão às cordas e ao instrumento, aos meus dedos e à palheta que usava. Pedindo perdão a musica e prometendo voltar a treinar. Mas, pedir perdão, assim como em qualquer outro tipo de relacionamento, nunca resolve nada.
Em meu íntimo, senti uma pequena angústia e uma imensa vontade de liberá-la. De chorar e deixar as lágrimas rolarem pelo meu rosto, pois a minha mais pura paixão havia ido embora e eu sentia medo de nunca mais a encontrar. O homem é uma criatura esquisita, só dá valor às coisas depois que as perde e esse é o principal motivo de perdê-las.
Triste, sentindo o vazio que a música havia deixado em mim, lembrei-me do que tanto estava aguardando. O porquê de eu ter tentado, depois de tanto tempo, tocar violão. Eu estava apenas tentando fazer o tempo passar mais depressa, pois aguardava ansiosamente uma resposta e, por isso, passei os olhos pelo quarto a procura do meu celular.
Era um aposento comum, digno de alguém que acabara de deixar a adolescência. Uma cama box em um canto, com os lençóis ainda desarrumados e o travesseiro caído sobre o chão, uma pequena mesa de escrivaninha onde repousava um notebook ainda fechado, uma televisão e um videogame, pequenas pilhas de quadrinhos e livros, uma mochila preta, com alguns bottons e chaveiros, além de tênis e roupas sujas espalhadas pelos cantos, em cima de qualquer objeto que pudesse os sustentar. Encontrei-o! Apanhei o celular de cima da cama e apertei alguns botões, com uma pequena silhueta de um sorriso em meu rosto. Logo a silhueta desapareceu.
“Ela ainda não me respondeu…” pensei, com um pequeno frio subindo pela espinha. Está certo, isso era algo comum. Que eu lhe mandava meia dúzia de mensagens e ela demorava séculos para responder, quando o fazia. Mesmo assim, eu esperava ansiosamente e é provável que ela saiba disso, talvez esse fosse o principal motivo dessa demora.
Amargurado, apanhei o notebook sobre a mesa e joguei-o na cama. Deitei-me sobre as cobertas desarrumadas, levantei o seu monitor e acessei o facebook.
“Não sei quem curtiu a sua foto” dizia um pequeno letreiro azulado no canto da página. A foto era de meio ano atrás, quando o meu cabelo era comprido e claro, alisado e arrepiado da forma que a moda ditava. Não havia pelos em meu rosto fino e os meus olhos cintilavam vivos e esmeraldados. Aquele já não era mais o que eu sou a algum tempo. O meu cabelo estava ligeiramente mais curto, uma pequena barba crescia sob o meu rosto, cujo estava bastante fundo e magro. Apenas os olhos eram os mesmos, apesar do olhar não ser.
Palavras são fáceis de serem pronunciadas e mais fácil ainda de serem ditas à brisa, mas podem desaparecer no mais leve vendaval ou ao menor sinal de tempestade. Já o olhar, realmente dá direção aos sentimentos como um maestro rege a música e, como uma janela para os pensamentos mais profundos, ele espelha o que mais queremos dizer para quem possuir a sagacidade de procurar no lugar certo.
Mesmo sem um espelho por perto, eu sabia. Meus olhos, ao contrário dos olhos cheios de vida na foto, pelo menos naquele dia chuvoso, no meio da semana, estavam sombrios, abertos apenas pelo leve capricho de continuar acordado. Apesar de sua cor verde-musgo, uma cor relativamente clara, eles não revelavam qualquer sombra de brilho, revelando claramente ao mundo um estranho semblante melancólico ou, pelo menos, deprimido. Já os seus contornos, eram olheiras escuras, que o torneavam como uma moldura feia que revelava o cansaço de passar as noites em claro.
“Ei!” dizia uma pequena janelinha que piscava incessantemente na tela do notebook. Era Ana Luiza, uma garota que sempre havia tido uma pequena queda por mim, apesar de nunca ter dito isso abertamente. Às vezes, eu simplesmente sabia dessas coisas, apesar de não serem muito comuns.
Era uma garota bonita, de cabelos negros, mas eu sentia uma estranha vontade de lhe cortar. Ela não me interessava de forma alguma e eu nunca descobri realmente o motivo. Geralmente era assim comigo, as garotas que estavam dispostas a serem minhas, a se entregarem completamente a mim, nunca me interessavam. Eu as achava um pouco... atiradas demais.
Assim sendo, respondi rapidamente “Oi Ana! Desculpe a demora, estava arrumando o quarto, mas já tenho que sair. Depois nos falamos.”.
Fechei a conversa, mudei o meu estado para “Offline” e decidi passear pela barra de atualizações. Várias fotos de pessoas que conheço só de vista, fazendo biquinho com a boca e indiretas escritas com o português mais porco possível. Todos os dias eu lembrava a mim mesmo que Facebook só me fazia passar raiva, mas mesmo assim, continuava acessando-o continuamente, como se estivesse em um circulo infinito. Algumas postagens evangélicas e outras sobre animês e fechei o site. “Por que diabos eu teimo em abrir essa merda?” eu me indagava inutilmente.
Não era um sujeito realmente popular por lá, como não era um sujeito realmente popular fora de lá. Apesar de conhecer muitas pessoas e muitas pessoas me conhecerem, eu nunca me dei ao trabalho de adicioná-las no meu perfil. Eu sabia que nunca conversaria realmente com elas e só passaria raiva vendo o que elas postariam. Eles mantinham a mesma distância de mim, ao que me parece, pois fazia um tempo relativamente longo que eu dava de cara o tempo todo com esses conhecidos e nada acontecia.
Eu realmente gostava de usar a internet por uma série de fatores. O primeiro, é que não importa o horário, o dia ou o que quer que esteja acontecendo, você pode interagir com milhões de pessoas de qualquer lugar do mundo, mesmo sem sair da sua cama. Pode estar ao lado da sua namorada no meio da noite, debaixo de chuva, sem precisar jogar pedrinhas na janela dela ou temer um pai enfurecido e ciumento. Em segundo lugar, você possui ao seu dispor, uma infinidade de informações a um clique de distância, sob a forma de bytes e pixels, mostrando as várias formas de ver o mundo, sejam essas informações verídicas ou não. Centenas de textos e, com um pouco de paciência, você pode conhecer o que quiser ou lugar que tiver vontade, ler os livros que te interessarem e ver os filmes que sempre quis. O mundo estava diferente desde a minha infância, tudo era muito mais acessível e, talvez por toda essa superabundância de informações e de pessoas ali, tão próximas, pareciam tão mais distantes.
Peguei o celular. Nada.
Suspirei e baixei o monitor do notebook. Estava entediado, como se isso fosse novidade, por isso puxei uma revista em quadrinhos e comecei a folhear lentamente as páginas, vendo apenas os seus desenhos. Já havia lido todas, mas ainda me sentia entusiasmado quando via os socos e pontapés ou lia as frases prontas.
De repente, o meu celular vibrou sobre a mesa e soltei uma exclamação ao saltar com uma agilidade quase felina em sua direção. Estava esperando uma resposta já havia mais de três horas, por isso, agarrei o objeto com força, mas logo me decepcionei. Era uma mensagem da operadora, me dando bônus para ligações para telefones locais. “Saco.” pensei e joguei o celular sobre a cama, sem qualquer cuidado.
Irritado, abri a porta e sai do quarto. Eram cinco da tarde, mas o corredor estava escuro como se fosse noite fechada. Segurei no corrimão e desci vagarosamente as escadas em sua extremidade, com o corpo encurvado para frente, como se carregasse o mundo sobre os ombros.
A sala era pequena, já que se tratava de uma pequena casa de condomínio, mas mesmo assim, era espaçosa e ampla. Lá, minha irmã assistia televisão, deitada sobre o sofá de forma desleixada, com os pés descalços sobre as almofadas. Ela era uma garota grande, apesar de seus dez anos. Com olhos amendoados e cabelos compridos e castanhos. Já a sua pele era queimada de sol, como toda pele de criança deveria ser.
-          O que você está vendo? – perguntei, fingindo um pouco de interesse. Sempre tentava quebrar o gelo do convívio social obrigatório, apesar de não ser muito bom nisso.
-          Série. – respondeu ela, com menos interesse ainda.
-          Claro. – respondi. Irmãos geralmente possuem vários tipos de acordos silenciosos para melhorar o convívio. No nosso caso, tais acordos englobavam uma vasta ramificação de possibilidades e ambos entendíamos isso perfeitamente. “Nunca se meta nas minhas coisas.” É o nosso acordo mais antigo e mais importante e quebra-lo é a forma mais terrível de começar uma pequena guerra de interesses.
A série era sobre vampiros, como era comum na época. Vampiros estavam na moda já fazia algum tempo e eu precisava me recordar constantemente de que as diferenças entre tais criaturas da noite com os clássicos, como Drácula de Bran Stoker. Para começar, o Drácula chupava sangue, já os vampiros da época...
-          Não era pra você estar dormindo? – soou uma voz estridente às minhas costas, preenchendo os quatro cantos da sala. Era a minha mãe e nem precisava ouvir pra saber o que ela diria em seguida, exclamando efusiva como uma gralha. – Você fica acordado a noite inteira, tem que estar descansado pra trabalhar bem! – sermões. Eles vinham aos montes desde que comecei a trabalhar, algumas vezes devido ao meu eterno problema com o sono. Algumas vezes devido a minha depressão.
-          Tá bom, mãe. Já vou dormir, só vim beber alguma coisa. – era a minha resposta padrão para todas as suas indagações.
-          Vê se dorme mesmo. – resmungou ela pela ultima vez e virou de costas, indo em direção à cozinha.
Ela se chamava Estela, o que me lembrava de uma amiga. Era branca, de olhos negros e cabelo escuro, apesar de alguns fios prateados reluzirem em contraste com a luz. Ela não era uma mulher com a idade muito avançada, o que era fácil perceber pelo seu rosto jovial, embora eu nunca tenha decorado de verdade quantos anos qualquer um dos meus pais tivesse.
A janela estava aberta. Lá fora, as pessoas andavam de um lado para o outro, na pacata rua cercada de muros altos e grades eletrificadas, mas eu duvidava que isso pudesse para-los, sabe? Eles sempre estavam por lá, me procurando. Olhei lá pra fora, com cautela e para os dois lados, e só então fechei a cortina.
Fui à cozinha, abri a geladeira e bebi um pouco de água em uma garrafa do próprio gargalo. O líquido quente desceu pela minha garganta e meu rosto se contorceu como se eu sentisse dor. Agua quente ninguém merece.
-          Você ainda não se trocou? – perguntou a minha mãe novamente. Ela lavava a louça freneticamente, de pé, com o corpo inclinado sobre a pia.
Eu nunca gostei realmente de falar com as pessoas quando o assunto não me era interessante e, naquele momento, a roupa que eu usava não era a minha escolha preferida para uma conversa. Não, eu não havia me trocado. Vestia uma calça preta desbotada de moletom e uma camiseta branca simples, sem desenhos. O único adorno em mim era a minha corrente em torno do pescoço, onde na ponta repousava o Um Anel ou uma cópia barata dele. Seu fecho havia se quebrado há quatro anos e por isso eu o prendi e nunca mais o tirei. Ele já estava até prateado, pois a tinta que lhe havia dado a cor dourada outrora saiu com tantos banhos juntos a mim.
-          Quando for tomar banho, eu me troco. – respondi calmamente, mostrando toda a minha vontade de continuar com aquilo.
-          Então vá tomar banho, vou preparar algo pra você comer enquanto isso, tá? – É verdade que a minha mãe era uma mulher briguenta e cheia de birra, que se irritava facilmente e se incomodava muito com muito pouco, mas me amava e isso eu não posso negar. Sempre cuidou de mim como se eu tivesse cinco anos e entenda, eu adorava isso.
-          Tá. – respondi, tentando terminar a conversa ali, mas me senti mal achando ter sido grosso demais, então continuei. – Hoje o trabalho vai ser puxado, chegou meia dúzia de computadores lá na empresa.
Ela me olhou e depois voltou os olhos para a louça enquanto esfregava um copo.
-          Isso é bom, assim você tem trabalho e eles não te mandam embora. – Ela morria de medo de eu ficar desempregado. – além do mais, pelo menos trabalhando, o tempo passa rápido.
Isso nunca foi verdade para mim, apesar de ser quase um consenso geral. Nunca gostei realmente de trabalhar e sempre preferi não fazer nada a ficar quebrando a cabeça. Eu podia passar horas sem fazer nada, pois o meu corpo estaria ali, parado, mas a minha mente estaria muito longe.
-          Sim. – menti, enquanto me virava e saia da cozinha.
Realmente não sabia o que fazer naquele dia. Estava deprimido demais e não sentia ânimo com qualquer coisa que fosse. Mesmo as coisas que eu gostava não me davam o prazer que deveriam dar, então eu caminhava pela casa como um fantasma, sem motivo definido, sem qualquer propósito.
Subi para o quarto e me tranquei lá dentro. Por algum motivo, me peguei pensando nela. Será que estava tudo bem? Será que havia acontecido alguma coisa e ela não podia me responder? Sempre pensei nas possibilidades mais trágicas possíveis, mas no meu íntimo, eu sabia que não havia nada de errado. Ela era assim, fazia eu a perseguir como um cachorrinho de rua persegue um mendigo que lhe dá um pedaço de pão. Era uma garota complicada, difícil de entender, inteligente, furtiva e talvez fossem essas coisas que mais me fascinava, além daqueles olhos sonhadores enxergando ao longe, aquela pele pálida como de um fantasma, aquele cabelo avermelhado, ardendo como fogo...
Já estava pensando nela novamente. Cortei a linha de raciocínio propositalmente, pois havia coisas mais importantes com o que me preocupar, como... o celular vibrando sobre a cama. Apanhei-o rapidamente. Era uma mensagem dela. Imediatamente, um sorriso cresceu em meu rosto da forma mais pura possível.
“Desculpe a demora, estava jogando. Está tudo combinado para amanhã? Nove horas mesmo?”
Rapidamente comecei a digitar a resposta, com medo de que ela já não estivesse com o celular próximo quando recebesse.
“Sim, nove horas no terminal de ônibus, certo? Estarei te esperando, mas mantenho contato.” Enviei.
Estava quase saltitando de alegria. A possibilidade de vê-la na amanhã seguinte era grande e isso já tornava o meu dia menos cinzento. Eu não dormiria naquele próximo dia, verdade, pois sairia do trabalho às seis horas da manhã e iria para casa apenas me trocar. Estaria cansado como nunca, mas isso não importava. Eu parecia um idiota apaixonado. Como um garoto de doze anos que pela primeira vez na vida teve uma garota entre os braços e não ligava para nada se pudesse vê-la novamente. Sentia-me como um personagem da Disney.
Um pouco mais animado, decidi ler alguma coisa. Peguei um livro e abri-o onde o marcador mostrava que eu havia parado.
Fora a música, a minha outra paixão incondicional, era por histórias. Livros e mais livros pelo quarto, contando dezenas de histórias épicas, fantasiosas, esplêndidas e magníficas. Em centenas de páginas e algumas vezes, mais de mil, eu me perdia em mundos que não existiam, conhecia pessoas que nunca nasceram e vivia aventuras que nunca aconteceram. Por algum motivo, essa fuga do mundo linear em que eu vivia, era terrivelmente prazerosa, pois as preocupações humanas eram deixadas de lado, para viver outras vidas em outras terras. Assim, já tive vários nomes, mais do que posso me recordar, já matei mais pessoas do que posso contar e já caminhei por lugares que não me atrevo a tentar relembrar. Já salvei donzelas em castelos, atravessei o inferno por um amor incondicional, enfrentei dragões em busca de princesas e roubei rainhas de suas torres majestosas. Sim, vivenciei mais amores do que Shakespeare se atreveu a escrever e amei cada mulher em cada vida minha como se fosse única, da forma mais cristalina e honesta.
Mas, por algum motivo, eu me sentia ainda mais próximo dos quadrinhos. O motivo é simples e até meio óbvio, os heróis, apesar de serem homens fantasiados, com poderes ou não, lutadores ou não, viviam em um mundo mais próximo do meu do que qualquer cavaleiro de livros de fantasia poderia viver, e isso me fazia mergulhar ainda mais em suas aventuras. Apesar de tudo, os meus heróis preferidos sempre foram os que não possuíam poderes ou os que não iam muito além da capacidade humana. Não, nunca senti que eles poderiam realmente ser reais, afinal, um tiro no peito e tudo pode estar acabado. Seres humanos não foram feitos para se aventurarem e eu estava ciente disso, por isso sentia um enorme peso. Queria tanto que tudo aquilo fosse real. Mas não se preocupe, eu não era um louco e, apesar da minha imensa vontade de me vestir e sair na calada da noite dando bordoada em bandidos, eu não fazia isso. A Liga Das Sombras ainda não existia e nem o Espada Sombria.
Quando me dei conta de que havia perdido a noção do tempo, olhei as horas no relógio. Já passava das oito da noite e eu precisava tomar banho para ir trabalhar. Fechei o livro, peguei uma trouxa de roupas no guarda-roupa e fui para o banheiro.
Liguei o chuveiro e deixei a água cair em meu pé, enquanto eu me esticava de longe, tentando não molhar o resto do corpo. A água estava fria, então esperei alguns segundos até ela esquentar e finalmente criei coragem de me molhar por completo. Deixei a água escorrer pelas minhas costas, nuca e ombros enquanto sentia o meu corpo esquentar e o banheiro ficar cheio de vapor, como uma névoa repentina. Finalmente relaxei e comecei a me ensaboar.
Comecei a refletir sobre os problemas no trabalho. Aquela noite seria puxada e eu não estava com um pingo de vontade de trabalhar. Percebi que a pequena alegria que a mensagem havia me passado, rapidamente havia se transformado em sombras novamente e eu me sentia deprimido, como sempre. Iria receber meu salário em breve, fazer uma tatuagem e comprar vários gibis e livros, mas isso não me animava. Na verdade, isso e nada pra mim, eram as mesmas coisas no momento. Talvez eu fosse um sujeito muito ligado ao momento, na época, e essa falta de vontade de fazer qualquer coisa que seja, tornava tudo mais escuro. As coisas podiam me deixar feliz, mas algum tempo depois, eu já não me sentia tão bem assim. Talvez a falta de mais mensagens dela houvesse me deixado assim, talvez os problemas no trabalho houvessem me deixado assim, talvez a solidão houvesse me deixado assim.
De alguma forma, eu me sentia tão só quanto jamais me senti. Como se não estivesse preparado para uma vida cheia de responsabilidades e ninguém para me apoiar, talvez tudo não passasse de uma estranha sensação de solidão, apesar de ter algumas pessoas ao redor, faltava alguma coisa.
É como dizem, solidão é estar rodeado de pessoas, mas sentir falta de apenas uma.
Ensaboei o cabelo com shampoo e deixei a água escorrer pela minha cabeça enquanto a esfregava com a ponta dos dedos.
Talvez eu comprasse uma katana. Não que eu realmente fosse usa-la ou algo do tipo, mas desde criança eu sonhava em ter uma espada sobre a minha mesa. Poderia tirar fotos com ela e parecer um idiota completo, poderia ameaçar as pessoas (de brincadeira) e poderia falar “Eu tenho uma katana.” Na verdade, talvez esse fosse o único propósito de eu comprar uma espada nos tempos atuais, pois nem de enfeite serviria, já que ninguém entrava no meu quarto.
Logo a ideia da katana desapareceu da minha cabeça quando pensei no que a garota que eu tanto pensava diria se eu comprasse uma. Pensar nela era diferente do que pensar nas outras garotas. Os sentimentos podiam variar dependendo do meu estado temperamental e eu podia ficar mais triste do que o normal ou realmente me animar um pouco para a vida.
O que será que ela está fazendo agora? Pensei, enquanto o sabão do meu cabelo escorria. Será que está pensando em mim ou será que está com outra garota? Eu nunca poderia saber, ela era tão inconstante quanto o vento e não vou mentir, isso era o que mais me atraia nela, apesar de todas as coisas em comum que tínhamos.
Eu era um garoto jovem, ora. Tinha dezenove anos e, como todo sujeito nessa idade, pensava em coisas esquisitas. Logo comecei a pensar no quanto sentia sua falta e, no momento seguinte, a imaginar ela ali comigo, e como seria se eu conseguisse, pela primeira vez, ficar sozinho de verdade com ela. Seu corpo lindo, perfeito aos meus olhos, magra, com a pele lisa e quente, livre de imperfeições, quadris bem torneados e seios grandes e fartos. Apesar de eu nunca tê-la visto nua realmente, algo me dizia que era encantadora. Eu a desejava muito... Todas as noites...
Sempre fui um sujeito carente desse tipo de coisa, então me sentia estranhamente propenso a pensar nessas coisas, apesar de não fazer nada além de pensar, na maioria das vezes. E aquela garota realmente mexia comigo. O modo como eu sentia vontade de beijá-la, como a puxava para junto do meu corpo... o modo como ela me tocava... O modo como eu queria que ela me tocasse... Coloquei a mão na parede, apoiando-me.
Quando dei por mim, todo o amor que eu queria dar a ela estava escorrendo pelo ralo junto à água.
Minha respiração arfava e o meu braço estava cansado, sentia o meu rosto quente enquanto a água descia pelo meu corpo magro, mas estava me sentindo muito bem. Precisava me lembrar de agradecê-la por isso.
Sai do banho, enxuguei-me com uma toalha e vesti a roupa que usaria para trabalhar. A brincadeira no banho me deixou um pouco mais relaxado, então tentei me concentrar em como faria o serviço naquela noite. Joguei o cabelo para trás, ainda molhado e, vestido, sai do banheiro.
“E ae.” Dizia uma janelinha piscando na tela logo que liguei o notebook. Era o Lucas, um velho amigo de escola.
“fala ae, gordão!” sim, eu o chamava de gordão, apesar dele não ser nenhum obeso. Era um modo carinhoso de mostrar afeição e proximidade, pelo menos entre os homens. Você só é sabe se é próximo de alguém quando o xinga e ele não se sente realmente insultado.
“Já assistiu o novo filme do Batman?”
“Não, vou amanhã. Nem dormir eu vou.” E era verdade.
“Putz, estou mega ansioso. Vai com a Laura?”
“Sim, vou encontrar ela e vamos passear e tal.” Sim, o nome da garota é Laura.
“Vish, vai rolar uns beijos ou vai assistir o filme? hahaha”
“Batman é Batman, meu caro amigo hahaha” respondi. Claro que eu esperava conseguir arrancar uns beijos daqueles lábios avermelhados, mas precisava manter o meu posto de fã.
Não estava animado para conversar, isso era verdade, então decidi cortar a conversa no meio após alguns minutos de falação. Sentia os efeitos da depressão retornando, graças aquele dia chuvoso e frio.
Você deve estar se perguntando o motivo de eu sair nove horas da manhã de casa. Estar se perguntando se eu não fazia faculdade de manhã ou qualquer outra coisa desse estranho rito social. Não, eu não fazia faculdade mais, pois havia trancado. Motivos para isso? Eu pretendia prestar pública no final do ano e não tenho mais nada a declarar quanto a isso.
Mas você podia ir mais tarde, não? Deve ser outra pergunta na sua cabeça e eu posso responder facilmente com uma só frase. “Quanto mais tempo se passa com a pessoa que se gosta, mais feliz se fica.” Enfim, eu queria encontrar a garota que amava o mais cedo possível para passar o máximo de tempo possível ao lado dela. Se você nunca amou alguém, não espero que entenda.
                                  -
Já passava das dez e meia quando sai de casa. A noite estava fria e o horizonte avermelhado, graças à poluição. Já a chuva que antes caia, havia diminuído gradativamente até àquela hora e, no momento, não passava de uma fina garoa que molhava a minha barba. Eu andava calmamente, enquanto soltava nuvenzinhas de ar quente pela boca, vestindo uma grossa jaqueta preta de couro, um cachecol branco e preto enrolado em torno do pescoço e uma boina, também preta, sobre a cabeça. No fone de ouvido, tocavam musicas melancólicas, pesadas, para entrar no clima daquela noite úmida e de aspecto sombrio.
Saindo do condomínio em que morava, o porteiro abriu o portão para mim e me desejou boa noite. Sempre gostei dos porteiros e eles sempre pareceram gostar de mim, talvez por eu sempre tiver sido educado com eles e por ser ter sido um bom sujeito durante grande parte da minha vida. Não só com os porteiros, mas as pessoas, em um geral, sempre achavam a minha companhia agradável ou fingiam isso muito bem.
- Boa noite, Alex. Bom trabalho pra você. – disse ele, sorrindo, enquanto eu passava por ele.
- Boa noite, bom serviço. – respondi, retribuindo o sorriso. Eu sempre fui muito educado com essas pessoas não tão próximas a mim, isso é verdade.
Caminhei pela rua mal iluminada do meu condomínio enquanto a chuva encharcava o meu rosto. Graças a ela, não havia visto uma alma viva até o momento, fora o porteiro, e muito menos os cachorros vira-latas que sempre me seguiam naquele horário, mas eu sabia que Eles estavam lá, em algum lugar. Para mim, eram como sombras errantes, caminhantes negros, que andavam de um lado para o outro, com seus olhos, sempre vigilantes, caçando-me. Por isso, sempre caminhei com o passo apressado, as vezes chegando até a arfar em poucos minutos.
Pisei em uma poça e senti a água gelada entrar em meu all-star e molhar a meia. “merda!” resmunguei enquanto continuava andando como se nada tivesse acontecido.
A noite estava calma e, apesar do frio e da chuva, logo comecei a ver algumas pessoas caminhando apressadas, o que eu não sabia se me dava alívio ou me deixava mais preocupado. Mulheres com toucas, protegendo seus cabelos alisados e homens despreocupados, saindo do trabalho com roupas molhadas coladas ao corpo. O vento gélido soprava forte, mas eu não estava realmente preocupado com isso, nunca fui de ficar preocupado com coisas assim.
Senti o celular vibrando em meu bolso e me apressei para apanha-lo. Era uma mensagem da Laura.
“Vou dormir, bom trabalho. Beijos e doces sonhos. Eu te amo.”
Passei o dedo no visor para tirar as gotas de chuva que haviam caído sobre ela, espalhando ainda mais a água, e respondi. “Boa noite, sonhe comigo, e eu também te amo.” Sim, essas pequenas coisas me deixavam muito feliz, pois de uma forma ou de outra, mostravam não que ela se importava, mas que havia se lembrado de mim naquele momento.
Agora, um pouco mais animado, continuei o meu caminho até a estação de trem, enquanto a chuva encharcava a minha barba.
Era um local mal cuidado, com grades cobertas por ferrugem e bancos quebrados, espalhados por toda sua extensão. O lugar onde as pessoas trabalhavam para garantir “todo o conforto e segurança dos usuários” era de madeira velha, pintada de vermelho com tinta barata que já descascava quase que por completo, e vez ou outra era frequentado por roedores, aqueles mesmo, de aspecto não muito higiênico.
Passei pela catraca, evitando uma grande sombra que crescia em um canto, e dei de cara com os dois guardas que ficavam lá à noite. Uma mulher e um homem. Não lhes desejei boa noite e nem nada disso, pois os via todas as noites e nunca pareceram preocupados comigo ou com qualquer outro que passasse por ali. Estavam muito ocupados conversando sobre seus assuntos importantíssimos com o vasto intelecto que possuíam para estar em um cargo tão alto, honrando seu salário milionário. Olhei pela extensão do local, procurando sinais de qualquer pessoa que pudesse representar uma ameaça, mas não encontrei nada de anormal.
Andei pela estação a procura de um banco que não estivesse molhado, mas não encontrei nenhum. Emburrado, passei a mão sobre um e empurrei a água para o lado, tirando o excesso. Então me sentei, abri a mochila e puxei de dentro dela um gibi que havia guardado para o momento.
Alguns segundos depois, uma dezena de vozes irrompeu em meio ao silêncio da madrugada, como uma explosão, e se aproximou rapidamente. Um grupo de pessoas caminhava alegremente pela estação, papeando sobre histórias mundanas e rindo em voz alta, para que todos soubessem o quão divertido eram. O grupo era formado, em sua maioria, por garotas. Três, na verdade, e um homem, o que mais falava. Não são deles, pensei, aliviado.
Duas trajavam vestidos simples, sem adereços, mas extremamente curtos. Já a outra, usava uma mini-saia jeans e uma blusa com o decote maior do que eu imaginei que seria possível um decote ser sem mostrar mais do que o normal. Se cabelos alisados de forma não natural, Todas estavam maquiadas de forma assustadoramente forte, com sombras cor-de-rosa sobre os olhos, quando não esverdeadas e batons escuros nos lábios. Já o homem, vestia uma blusa de frio de marca, verde-escura, e usava a touca da blusa sobre a cabeça.
Forcei-me a não parecer incomodado. Com esse tipo de gente, geralmente não se deve arrumar confusão. Não no bairro em que eu morava, pois parecia o Velho Oeste, onde tudo era resolvido na base do tiro.
A conversa ficava cada vez mais alta e as garotas soltavam risadas histéricas entre suas falas estridentes. Indignado, por algum motivo desconhecido, resolvi prestar atenção no que tanto falavam, mesmo que soubesse que passaria raiva.
- ...o Jorginho logo vomitou no chão tudo da casa. Eu falei pra ele não bebe, mas ele insistiu. – dizia ele, deixando claro o seu jeito “malandro” transparecer na voz. – Ai ele dormiu. Botamos uma calcinha nele e tiramos várias fotos, se liga. – continuou ele, enquanto mostrava as fotos em seu celular.
- Mas o Jorginho é mó gato, por que você fez isso? – perguntou uma das garotas, interessada.
- Então você já deu pra ele, né? – riu o homem, enquanto as outras garotas riam incansavelmente. – fala ai, ele tem pau grande? Maior que o meu?
Isso foi demais pra mim. Coloquei os fones no ouvido e aumentei o volume da música para o máximo possível e, mesmo assim, ao fundo, eu ouvia os sons da conversa, apesar de não conseguir entender as palavras, o que já era alguma coisa.
Em alguns minutos, em meio à escuridão do horizonte, dois olhos amarelados tremeluziram e um som de buzina ecoou alto, sobre todos os outros sons. O trem vinha pelos trilhos em sua baixa velocidade, serpenteando a estação.
Levantei-me e fechei o gibi, tomando cuidado para colocar o dedo entre as páginas em que estava para não as perder, e fiquei de pé frente ao vão. Quando o trem passou por mim, o golpe de vento foi forte, mas não me movi. As janelas e portas dos vagões que passavam por mim moviam-se rapidamente e, em intervalos pequenos, via meu próprio reflexo neles. Um semblante cabisbaixo de um homem em seu inverno. Uma sombra do que um dia foi.
O trem parou e as portas automáticas se abriram lentamente. Entrei dentro do vagão e o vasculhei com os olhos de ponta a ponta.
O comprido corredor cheio de cadeiras se estendia frio e estaria vazio se não fosse por um homem de meia idade sentado, com a cabeça encostada no vidro e os olhos fechados, dormindo profundamente. Tinha a pele branca e flácida e seus cabelos quase brancos rareavam no topo da cabeça, lisos, jogados para trás. Usava uma jaqueta marrom escura, com alguns botões faltando na parte da frente e uma calça jeans surrada. Ao seu lado, caída sobre o chão de borracha preta, sua mochila repousava, virada de cabeça para baixo e seus poucos pertences estavam por todo o lado. Pensei em ajuda-lo, mas ele dormia de uma forma tão pacata, que senti dó de acorda-lo. Pensei, por alguns segundos, em guardar as coisas na mochila e colocar ao lado dele, mas o medo de que alguém achasse que eu o estava roubando ou de que ele acordasse no meio do ato, me impediram. Fora isso, nada que pudesse ser uma ameaça.
Sentei-me em um banco no canto e quando abri o gibi novamente, pronto para ler, mas o grupo da estação entrou no mesmo vagão que eu e se sentou a algumas cadeiras de distância.
“Sério?” pensei, irritado. Eu iria até a última estação e, se eles não descessem antes disso, a viagem junto a um bando de pessoas desagradáveis que falavam em voz alta no meio da noite seria demasiadamente longa.
A conversa do grupo continuou enquanto as portas do trem se fechavam e ele começava a andar, aumentando a velocidade gradativamente. A medida que o som do trem correndo aumentava, por causa da potência, o volume da conversa também ficava mais alto para se adequar.
Eu sempre tive consciência de ser uma pessoa naturalmente irritada com as coisas, isso corre em minhas veias desde que descobri o lugar cinzento em que o mundo se situava. A raiva que eu sentia não era raiva de algo, como se odeia alguém ou alguma coisa, era uma raiva constante, angustiante, comprimida milimetricamente em cada impulso nervoso em meu cérebro. Eu olhava para as pessoas e via o quão feliz elas estavam, independente de sua situação atual, e não era capaz de entender os motivos para isso. Essa irritação vinha no meu estado de espírito comum, sempre raivoso, como um homem cuidando de sua amada, como um cão guardando sua comida.
Andando a pé, debaixo de chuva com uma blusa fina, a única que seu pequeno salário podia comprar, enquanto o vento soprava e elas tremiam. Saindo no meio da noite para um trabalho que elas não gostavam de fazer, para simplesmente sustentar os filhos que acabaram por ter cedo demais em suas vidas. Ver uma mulher sorrir para as amigas enquanto sabia que ia chega em sua casa e apanhar do marido por ter se atrasado. Ter que fazer sexo com ele, mesmo contra a vontade, por medo de seu marido buscar prazer em outras pessoas. Tudo isso era incompreensível para mim, da forma mais pura possível. E essa incompreensão trazia a raiva em uma coleira, com correntes prateadas.
Olhei pela janela e passei a mão no vidro, limpando o embaçado. Desenhei um pequeno rosto nele, sorrindo. Ironia. A chuva ainda estava forte... forte como naquele dia... caia pesada e o meu hálito criava nuvens brancas de solidão.








Interlúdio - Cicatrizes do tempo.

Apesar do frio naquele fatídico dia, eu vestia apenas com uma camiseta preta, de uma banda que gostava na época, e uma calça jeans escura. Estava na sétima série, mas já estava me tornando o homem que virei nos dias de hoje, ou pelo menos estava no caminho para isso.
Eu estudava em uma escola pública na época e ela estava vazia. Era um daqueles dias pós-feriado em que havia aula, então os alunos geralmente faltavam em massa, mas mesmo assim, minha mãe me fez ir estudar, como era de costume. O professor estava sentado sobre a mesa, fingindo fazer algumas anotações enquanto eu e os outros três alunos presentes enrolávamos até a hora do intervalo. Eles conversavam alegremente e contavam piadas sem graça enquanto eu desenhava Pokémon na mesa.
Quando o sinal bateu, me levantei da cadeira e desci para o pátio. O lugar era espaçoso e amplo, com alguns bancos espalhados por ai, para os alunos comerem seus lanches e jogarem jogos de cartas. O piso era verde-claro e ainda havia as linhas que remetiam a uma época muito anterior a da que eu estudava, de quando aquilo tudo fora uma grande quadra de futebol de quadra. O teto era alto branco, sem janelas, onde o mofo crescia constantemente, o que deixava o cheiro do lugar extremamente desagradável. Por isso, eu não gostava de ficar lá e sempre ia pra fora, onde crescia uma grande arvore, de tronco grosso e raízes saindo da terra.
Naquele dia, recordo-me de ter saído imediatamente do pátio e ter ido para lá. Eu não tinha qualquer amigo naquela escola, por isso, era livre para ir onde quisesse, pois sabia que ninguém ia se importar. Na verdade, eu era completamente negligenciado e me sentia praticamente invisível, como um fantasma da escola. Não que eu fosse uma pessoa ruim, feia ou qualquer outra coisa, muito pelo contrário. Eu era até apresentável na época, mas mesmo assim, os meus apelidos não eram muito amigáveis. Doido ou Louco eram os nomes mais comuns quando precisavam se referir a mim, além de Et ou Hospício.
Nunca achei os nomes realmente ofensivos, apesar de tudo, eu passei a parar de ligar para essas coisas depois de um tempo. Não sabia bem os motivos de me tratarem daquela forma e até hoje não entendo muito bem, mas apesar de tudo, é fácil refletir o motivo de me odiarem tanto. Eu era inteligente, era relativamente bonito, mas gostava de coisas que mais ninguém gostava na época, por isso eu era taxado como “estranho” ou “anormal”, o que já era motivo, pelo menos na cabeça daquelas pessoas, para me tratarem assim.
Eu era diferente deles todos, tanto na forma de pensar quanto na forma de agir, mas sempre que eu me destacava em alguma coisa, diziam que era por eu ser estranho, que só gente doida conseguia, queria ou gostava de fazer aquelas coisas e, acho que no fundo, eles sentiam uma pequena culpa ou inveja e por isso queriam me rebaixar, pra me colocar no mesmo posto miserável em que eles se encontravam ou pra fazer com que eu me sentisse ainda menor do que elas, usando de agressão moral e, algumas raras vezes, até física, refletindo a mediocridade delas, negando alguma capacidade minha que tenha sido melhor que a deles na época.
Enquanto passava pelo pátio, algo bateu com força na minha costela, talvez um cotovelo, mas não emiti som algum, apesar da pequena pontada de dor.
                - E ai, esquisitão? – era Anderson, um sujeito de dezenove anos que ainda estava na oitava série. Ele era quase duas cabeças mais alto do que eu, sendo que eu nunca fui um sujeito baixo. Sua pele era escura, seus olhos negros e faltava um pedaço em seu dente da frente. Alguns diziam que ele havia perdido em uma briga, outros diziam que ele havia caído enquanto fugia da polícia. Mas o que mais vale a pena contar sobre ele, é que era um sujeito perigoso, como aqueles valentões de filmes dos anos oitenta.
                - Ôpa. – respondi, passando a mão sobre a costela, tentando amenizar a dor e me virando.
Ele estava com três amigos, todos com quase o mesmo tamanho que ele e a mesma idade avançada para o grau de escolaridade. Todos me encaravam com olhos de desaprovação.
                - Estamos meio entediados aqui, sabia? – Ele começou. Logo percebi que estava me enfiando em algum tipo de joguinho de mau gosto. – Não temos nada pra fazer e não queremos voltar pra aula, então por que você não nos ajuda?
                - Ajudar como? – perguntei, desconfiado. Nunca saia boa coisa de conversas assim, ainda mais com aquele sujeito.
Ele investiu pra cima de mim, rápido como o bote de uma serpente, e passou o braço em volta dos meus ombros, me abraçando. Assustado, meu corpo ficou rígido com o movimento de Anderson, mas logo voltou ao normal.
                - Porque não escolhe um amiguinho seu pra brincarmos? – começou ele, enquanto andava pelo pátio me puxando junto. Eu precisava olhar para cima para encara-lo. – algum outro retardado, já que estamos cansados de você.
                - Brinquem com o Daniel, do quinto ano. – disse rapidamente o primeiro nome que me veio à cabeça. – ele é um cara bem legal.
- Ótimo! – sorriu Anderson, ainda com os braços em volta do meu ombro. Aproveitando-se disso, me empurrou com força para frente. Cambaleando, pego desprevenido, andei desajeitadamente tentando retomar o equilíbrio, mas um dos amigos do agressor colocou o pé na frente do meu. Tropecei e caí sobre o chão, com um baque surdo.
                - O Daniel mandará lembranças. – disse um dos garotos enquanto eles saiam de perto de mim e caminhavam rindo em direção as escadas.
Você deve estar se perguntando os motivos por eu ter sido tão frouxo com pessoas me agredindo dessa forma e eu vou lhe contar o motivo. Eles eram adultos, famosos por serem sujeitos perigosos, que já seguraram armas de fogo e já tinham pelos no rosto. Eu era apenas um nerd esquisito, magrelo e alto demais pra minha idade, apesar de tudo. Eu não queria encrenca com pessoas como eles, pois isso acarretaria em coisas piores do que um olho roxo.
Assim, levante-me, limpei as minhas roupas e sozinho, sai do pátio em passos apressados, passando pela forte chuva que descia, e me abriguei sob a árvore lá de fora. As pessoas chamavam-na de Arvore da Morte, pois rezava o boato de que um padre havia se enforcado nela, amarrado a corda em seus galhos. Claro que nunca liguei pra isso, mas o resto dos alunos evitava passar por lá. Mas naquele dia, ocorreu algo diferente.
Quando cheguei lá, arfante e cansado, percebi que havia uma garota do outro lado do tronco, olhando para o horizonte, onde a atual quadra ficava. Uma garota que eu nunca havia visto antes. Ela estava com uma camiseta preta, de uma banda de rock, e usava uma pulseira com espinhos de ferro prateados. O meu queixo caiu e senti o meu rosto esquentar. Ela ainda não havia me visto, então permaneci em silêncio por algum tempo, enquanto pensava no que fazer. Eu nunca havia, de fato, tido uma amiga e muito menos beijado uma, e graças a isso, não sabia conversar direito com uma garota.
Seus cabelos eram escuros, mas refletiam um brilho azulado, talvez mechas coloridas já desbotadas. A pele era clara e o corpo era magro e bem desenhado. Senti um leve formigamento na palma na mão e decidi dar-lhe oi.

Interlúdio. Fim.


De súbito, senti o celular vibrando no bolso e dei um pequeno pulo na cadeira. Despertado, peguei-o do bolso.
“Não consigo dormir. Estou meio deprimida. Queria que estivesse aqui.” Era ela, estava deprimida e eu nem precisava saber o motivo. Ela era como eu.
Pode me chamar de egoísta, mas fiquei feliz naquele momento, pelo menos nos primeiros segundos. Ela havia se lembrado de mim naquele momento e isso, como já disse, era como um presente inesperado. Entretanto, no estante seguinte, senti-me mal.
Ela precisava de mim, estava com problemas e eu não estava com ela para consola-la. Na verdade, dificilmente estava. Eu queria estar ali, com a garota que eu mais amei na minha vida, dizendo que tudo ficaria bem, que nada daria errado enquanto eu estivesse ali, segurando sua mão com força. Queria acariciar os seus cabelos e dizer que, se quisesse chorar, poderia fazer isso no meu ombro, enquanto eu a tomava em meus braços e lhe dizia o quanto a amava e como sempre estaria ali. Mas não era possível, tanto por eu não poder fazer nada daquilo quanto ao estar ao lado dela sempre.
Eu não podia fazer nada e sabia disso, era tão fraco e pequeno diante da maioria das pedras que apareciam em meu caminho, que me perdia em pensamentos deprimentes. Eu não possuía nada a oferecer para ela, não era uma garota para lhe atrair, não era rico para lhe dar mimos e nem era presente para lhe dar todo o amor que desejava dar. O que diria então para ela? Que esperasse pelo dia em que eu seria um sujeito mais presente em sua vida? Que largasse tudo e que confiasse em mim? Eu pareceria um idiota, tentando mudar algo natural, talvez ela me achasse um babaca, um babaca sonhador. O que de fato eu acho que era.
“Eu queria estar ai ao seu lado e dizer que tudo vai ficar bem, mas não posso. Só posso dizer que estou pensando em você e que, quando te ver, farei de tudo pra te fazer sorrir. Aguente, por favor.”
Não havia nada melhor que eu pudesse fazer.
Quando me dei conta, um forte cheiro de fumaça estava tomando conta do vagão por completo. Um cheiro mais doce do que a fumaça geralmente é e logo estranhei isso. Voltei os meus olhos para o vagão, averiguando a situação e percebi de onde o cheiro vinha. O pequeno grupinho passava, de mão em mão, um cigarro de maconha, enquanto ria aos ventos. Eles davam uma tragada no cigarro e passavam para o companheiro ao lado, em rodinha.
O cheiro forte já havia impregnado nas minhas narinas àquela altura, então resolvi abrir o vidro. Com dificuldade, puxei as travas e o vidro desceu com força, batendo no parapeito. O grupo nem se deu ao trabalho de olhar.
“Que saco, sabia que eles iam fazer alguma merda pior do que simplesmente falar alto.” Pensei, enquanto tentava me concentrar no gibi.
Da janela aberta, algumas gotas ainda caiam e molhavam a minha boina. Guardei o gibi na mochila com medo de que molhasse e resolvi trocar a música que ouvia. Coloquei em uma ligeiramente mais pesada, com riffs de guitarra muito graves e uma bateria frenética.
Logo percebi que estava fantasiando sobre me levantar dali, ao som do solo de bateria, e acertando socos no sujeito que fumava o cigarro de maconha. Imaginei-me pegando o cigarro e queimando seu olho direito enquanto acertava socos em seu estômago. A musica estava agressiva e cada vez mais rápida, a cena na minha cabeça estava eletrizante, eu caminhava rápido, me movia rápido, pensava rápido, enquanto o trem corria e as garotas gritavam, assustadas.
Mas, você me conhece. Naquela época, eu não faria nada disso. Na verdade, faria menos do que fiz, se estivesse totalmente consciente. Talvez fosse apenas um ato de auto-preservação, um instinto natural, como o de uma leoa, mesmo em bando, reluta em atacar um rinoceronte. Ela precisa, precisa comer e dar de comer para o seu macho e filhote, mas não o faz. Ao invés disso, procura outra saída, uma presa mais frágil. Eu fiz o mesmo, só que o meu ato foi muito menos honroso.
Quando o cheiro tornava-se insuportável e, mesmo que fosse coisa da minha cabeça, comecei a sentir-me um pouco zonzo, resolvi trocar de vagão quando o trem parasse na próxima estação.
Eu estava isolado, o homem era muito maior do que eu, tanto em relação a sua altura quanto a seu peso. Tá bom, talvez apenas o peso, afinal, eu era um sujeito um pouco alto, mas isso não mudava nada. Eu levaria uma surra, qualquer que fosse a minha reação, se ela fosse da mais mínima agressividade, ainda sem levar em consideração o fato do sujeito estar drogado.
Quando o trem parou, levantei-me, apanhei a mochila e fechei o gibi, deixando um dedo entre as páginas onde havia parado de ler. Então, dei alguns passos em direção à porta, até perceber que ela não estava aberta. Confuso, olhei para o lado e vi que todas as outras haviam se aberto normalmente. Saco, pensei, enquanto me direcionava a porta do outro lado do vagão.
Quando caminhava pelo corredor, apressado, com medo das portas se fecharem e eu parecer um idiota perante o pequeno grupo, que ainda ria incessantemente, em meio à palavras agressivas e de baixo calão, tropecei. Sim, eles não sabiam que eu estava saindo do vagão por causa deles, o que tornava tudo ainda mais preocupante, pelo menos para mim, já que, se a porta se fechasse, eu ficaria preso dentro do vagão até a próxima e eles pensariam qualquer coisa do tipo "Ele perdeu a estação!" e isso geraria muitas risadas do grupo, mais do que o normal, claro.
Retomando, eu tropecei. Meu pé chocou-se com algo, mas não dei atenção. Resolvi simplesmente ignorar isso e continuar, e esse foi o meu erro. O que quer que fosse, enroscou-se na minha perna, enrolando-se como uma serpente, me fazendo perder o equilíbrio de tal forma, que não consegui me segurar em lugar nenhum antes de desabar sobre o carpete de borracha negra que cobria o piso.
A dor que subiu pelo meu nariz foi o de menos, estava acostumado a me machucar. O pior foi o barulho, um baque surdo, como o de um tapa no rosto, daqueles de novela. Senti algo quente escorrendo, mas não liguei. Tentei me levantar, apressado, enquanto ouvia o sinal que precede o fechamento das portas. Quando chutei o objeto com o pé livre, tentando me soltar, a porta se fechou ao mesmo tempo em que percebi algo ao meu lado. Era o homem de meia idade, que antes dormia tranquilamente. Olhei para os meus pés. A mochila dele estava aberta, com todos os pertences espalhados pelo vagão, rolando, enquanto o trem começava se movimentar.
- Que diabos você está fazendo? - perguntou ele, com um olhar incrédulo. - Sabe o que tinha na porra da mochila pra sair chutando ela por ai, seu filhinho da puta? - disse, com uma voz que parecia mais agressiva do que imaginei que aquele sujeito de aparência precária poderia ser capaz de fazer soar, enquanto olhava em volta. Risos ecoaram às minhas costas, enquanto eu me levantava, trôpego, e me virava de frente para o homem.
- Eu só tropecei! - disse, tentando parecer inocente, levando em consideração que realmente era. -Quando entrei aqui, já estava tudo jogado por ai, a culpa não foi minha!
O homem arregalou os olhos, como se não acreditasse no que eu havia dito.
- Pegue tudo! Agora! Antes que eu te dê um soco nessa sua cara de retardado! - rosnou, enfurecido.
- Ele não fez nada mesmo, velho. - veio uma voz ao fundo do vagão. Rapidamente reconheci como a voz do sujeito que fumava maconha, então ele continuou, falando lentamente, com pausas entre as palavras. - Essa merda já tava ai, eu vi. Entramos juntos no trem e tava tudo jogado. Ele só tropeçou na sua mochila.
O homem de meia idade pareceu enfurecer-se diante daquelas palavras. Seu rosto, de branco, passou a tornar-se de um rosa claro, ligeiramente brilhante, graças às gotas de suor que pareciam ter aparecido de uma hora para a outra em seu rosto. Logo, resmungou qualquer coisa, provavelmente após perceber que o sujeito que falava era duas vezes maior do que ele, e abaixou-se para pegar seus pertences e colocar de volta na mochila. É como dizem, no final das contas, a ajuda vem de onde menos se espera. Ou é o que eu pensei no momento...
- Vem cá, senta aqui com a gente. - disse o homem negro, enquanto pegava o cigarro da mão da garota ao seu lado. To ligado quem é você, é o Alexandre, né?

Dessa vez, senti um friozinho subir pela espinha. Era comum, pelo menos para mim, as pessoas me conhecerem, mas eu não conhecer ninguém, isso geralmente acontecia graças às histórias que contavam sobre mim por ai, mesmo antes de eu ser o Espada-Negra. Não, isso não era qualquer tipo de boa-fama, como as pessoas estão acostumadas a pensar que é quando muitas pessoas te conhecem. Dependendo das histórias, isso pode ser perigoso, realmente perigoso, e esse é motivo do calafrio que tive. Era comum as pessoas comentarem sobre o fato de eu não dormir nunca, o que era uma meia verdade. Eu tinha insônia, isso é um fato, mas dai, não dormir nunca, já é demais. Isso estava diretamente relacionado ao fato de eu trabalhar de madrugada e ainda passar o dia acordado, procrastinando. Outras, comentavam sobre o fato de eu ser um sujeito ligado ao satanismo, ocultismo e outras ramificações religiosas não casuais e... digamos, de certa forma, odiadas. O ápice disso deu-se, pelo fato de, a um tempo atrás, eu ter um cachorro negro. Sim, um cachorro negro, grande como um urso, chamado Junior. Como ele não era agressivo, de forma alguma, e estava acostumado a andar por aí sem coleira, desde bebê, eu chegava da escola, enquanto estudava à tarde, e o levava para passear enquanto escurecia. Alguém, que com certeza estava totalmente drogado, me viu conversando, durante o crepúsculo, com um cachorro negro, enorme, que andava calmamente ao meu lado, sem focinheira, sem corrente. Em sua tenra loucura, a pessoa achou que o cão podia ser o diabo em pessoa, levando em conta a pequena fama que eu já possuía. Outras ainda, juravam por todos os deuses que conheciam, que eu vomitava sangue, que eu matava animais e os usava em rituais satânicos, que eu colecionava dentes de outras pessoas e toda as sorte de bizarrices.
Resumidamente, as pessoas sempre me conheciam e nunca por um motivo bom. Cansei de contar as vezes em que fui ameaçado de morte ou quantas vezes realmente tentaram me matar.
Por isso, estremeci.

-Sim, sou eu. - respondi, confuso. - e você? Quem que é?
O homem se sentou no banco de plástico do vagão, tragando e jogando o cigarro, que já estava no fim, pela janela. Em seguida, soprou a fumaça calmamente, deixando-a dançar pelo vagão. Eu parei de frente para ele, de pé, segurando-me em uma barra de ferro.
- Sabia que não me conhecia, sou amigo do Eduardo.
Eduardo era um maloqueiro de uma escola pública local. Era um sujeito cheio de amigos, todo mundo se identificava com ele. Todo mundo, menos eu e os meus poucos companheiros.
- Ah sim. - respondi, preenchendo o espaço silencioso que pairou.
- Ele é um cara muito legal, devo vários favores pra ele. Já me tirou de cada merda, cara... - comentou ele, virando-se para o homem de meia idade que ainda resmungava, pegando os pertences do chão. 
- Imagino. Nunca conversamos de verdade. - disse, deixando claro que ele não era meu amigo.
- Ele conta coisas esquisitas sobre você, sabe? - comentou, soltando um risinho enquanto virava-se para as amigas, que, pela primeira vez desde que as vi, estavam quietas, como se fossem mudas. - Conta que você coleciona crânios de animais e coisa do tipo. É verdade isso? - terminou, virando-se para o homem novamente.
Eu sabia que rumo aquela conversa estava tomando.- Claro que não! - exclamei, fingindo um riso seco. - Que tipo de maluco faz isso?
Um barulho ecoou pelo vagão, indicando que o trem estava se aproximando de uma nova estação. Aproveitei a deixa.
- Escuta, tenho que ir, cara. Já passou da minha estação e eu preciso voltar, estou atrasado pra... - disse, enquanto olhava pela janela, ajeitando a mochila nos ombros. Mas antes de eu terminar a frase, o sujeito me segurou pelo braço.
- Quietinho.

Se me perguntasse, eu não saberia o que estava acontecendo. Uma coisa era certa, não era nada agradável. Nessa fração de segundos, enquanto os dedos grossos do sujeito apertavam o meu braço na altura do pulso, liguei tudo a um assalto. Fazia sentido, se você não parasse para pensar sobre um cara contar que era amigo do Eduardo e que o Eduardo falava coisas estranhas sobre mim. Mas era apenas uma especulação, claro, eu não tinha ideia do que esse homem poderia fazer, do que ele queria comigo. Mas então, lembrei-me dele ter mencionado os crânios de animais e isso me fez entender tudo. Isso pelo fato de muitas pessoas sentirem uma sede incrivelmente forte de querer me matar ou, no mínimo, me quebrar os ossos, baseando esse desejo em boatos. Ele não queria o meu celular ou o pouquíssimo dinheiro na minha carteira.

Falando em celular, ele vibrou no meu bolso nesse exato momento. Não dá pra ler agora, Laura. Foi mal. Pensei.
A porta automática fez um barulho, quase um grunhido metálico, enquanto abria-se. Olhei para o lado e o homem de meia idade ainda estava lá, sentado de lado para nós, abrindo um jornal velho e amassado, que provavelmente havia caído da mochila.
- Senta aqui do meu lado. - disse o sujeito, enquanto me puxava para o lado com força, fazendo-me cair sobre o banco. Vale lembrar que agora, ele falava com a voz o mais baixa possível. - Fica quieto, se não, eu te jogo dessa merda de vagão quando o trem começar a andar.

Eu estava acostumado a esse tipo de ameaça. Na verdade, eu não estava realmente assustado, apesar de evitar qualquer tipo de confronto direto com o sujeito. Não, longe disso, não tinha realmente muita coisa a perder, no final das contas, por isso, nunca tive um grande receio de morrer.
Eu não era um sonhador, que anseia por se formar, ter uma carreira de sucesso e ganhar toneladas de dinheiro sem fazer esforço. Longe disso, eu estava tão desiludido com os estudos, que estava completamente alheio à eles. Claro que os sonhos não se resumem realmente a isso. Algumas pessoas passam a vida desejando conhecer a Disney, morar em algum país distante, ver alguma maravilha natural, escalar alguma montanha... e quanto a esse tipo de sonho, eu também não possuía nenhum. Claro, eu tinha os meus desejos, mas eles soavam tão levianos, tão distantes, que eu me contentava em desejá-los e não a sonhá-los ou persegui-los por toda a minha vida. O que tinha a perder realmente naquele momento? Eu estava deveria me preocupar? Havia algo que eu realmente quisesse fazer? Não, não havia, eu já havia perdido a vontade de perder o meu precioso tempo pensando em coisas inúteis que eu sei que nunca aconteceriam. Eu já não desejava nada mais, nada maior, nada além do que já tinha. Era como um garoto sem direção, sem uma estrada para seguir, se é que isso está fazendo algum sentido. Eu não vivia, eu não me sentia vivo, de forma alguma. Era apenas um garoto infeliz esperando, dia após dia, a morte dar as caras.

Virei-me para as garotas, procurando realmente uma luz naquela situação. Elas desviaram o olhar e começaram a conversar sobre cores de batom, claramente se esforçando para encontrar as palavras.

O trem aumentava a velocidade, correndo pelos trilhos da cidade, na calada da noite. Os postes lá fora, iluminavam ruas sombrias, sem uma alma viva caminhando. Já deve ter passado da meia noite. Desse jeito, vou me atrasar para o trabalho. Pensei, preocupado. Olhei para o homem, quando vi que ele se mexia. Estava despreocupado, com o rosto impássivel, acendendo um novo cigarro de maconha. Aqui, do lado dele, vou acabar ficando drogado. Refleti, tentando rir um pouco, mesmo que mentalmente.
O cheiro começou a subir rapidamente, e logo me vi envolto a fumaça com cheiro de grama queimada. Imagino como as pessoas podem gostar deste cheiro, pois, segundos após a fumaça penetras pelas minhas narinas,  comecei a sentir o estômago embrulhar, como se não tivesse comido nada a séculos, porém, sem a fome que viria normalmente. Logo percebi que, sentir o cheiro de longe era tão incomparável com sentir o cheiro de perto que eu deveria ter ficado quieto enquanto ainda estava sentado longe. Comecei a respirar pela boca, em fortes golfadas, tentando deixar o ar entrar em meus pulmões, mas na segunda tentativa, comecei a tossir. Tosse seca e amarga.
- Nunca deu um trago, né merdinha? - riu o homem, percebendo o meu ataque de tosse. Era verdade, mas não respondi. Simplesmente virei o rosto e contemplei a janela aberta à frente, onde tudo era escuridão.
O trem continuou durante alguns segundos em sua velocidade normal, até começar a reduzir, lentamente, enquanto o homem de meia idade, o encrenqueiro, se levantava e agarrava a mochila. Estava indo embora.
Quando ele saiu e a porta automática se fechou, o homem virou-se para mim, com um olhar comum, como o de uma pessoa que passa manteiga no pão, com as sobrancelhas erguidas. Mal sabia eu o que se seguiria.